‘Minha filha me deu um nome’: homem conhece família do pai após 54 anos

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“Eu acreditava que homem não chora, mas fraqueza é fingir indiferença nos momentos de dor”, diz o dono de oficina mecânica Huanderson Marques, 57. Olhos avermelhados e o rosto rajado de lágrimas entregam que a manhã foi difícil. Ao lado dele, o tio Antônio da Silva, 63, observa a mancha de sangue que se forma sob o band-aid colado no couro cabeludo do sobrinho. Embora se conheçam há apenas três anos, a química e a pequena diferença de idade dão impressão de uma amizade antiga.

Um galo começa a se formar na cabeça calva de Huanderson. Numa parada de ônibus no centro de Brasília, ele liga pela terceira vez para a filha mais velha, a professora de literatura Andressa Marques, 36. “Cadê essa menina?”, sussurra ele. O homem de pouco mais de 1,60m de altura, andar imponente e trejeitos joviais resiste ao sol escaldante do DF, ainda mais quente nas tardes de julho.

A reportagem do TAB o acompanhou até o cemitério Campo da Esperança. O local foi o ponto de partida para que uma família separada por toda uma vida pudesse se reconectar com a própria história.

Amor de Carnaval 

A filha de Huanderson chega ao encontro com 20 minutos de atraso. Seguem todos para a necrópole, a 10 minutos do centro de Brasília. É lá que o corpo da mãe de santo Auta Maria de Jesus está enterrado. Conhecida como Dona Nenê, a candomblecista, iniciada por Menininha do Gantois, ganhou em março de 2022 o título póstumo de cidadã honorária do DF pelo trabalho no terreiro que mantinha desde os anos 1960 no quintal de casa, em Ceilândia. Nascida em 1923, em Jequié (BA), ela ajudou a construir a identidade da cidade com maior influência nordestina em torno da capital federal.

Em 1941, Nenê deu à luz o pai de Huanderson, o baiano Plínio José da Silva, que no fim dos anos 1950 foi morar no coração de Goiás para ajudar a construir Brasília. Eletricista, ele trabalhou em diversos prédios no DF.

Plínio morreu jovem, aos 31 anos, atropelado por um trator num canteiro de obras. Pouco tempo antes, no Carnaval de 1964, havia conhecido a paraibana Laudilia Marques na capital federal. “Desse relacionamento nasceu meu pai”, conta Andressa.

Aos 19 anos, Laudilia voltou a Patos (PB) com o pequeno Huanderson. Criado até o início da adolescência na Paraíba, o mecânico acabou seguindo os passos do próprio pai e, aos 14 anos, voltou ao lugar onde nasceu em busca de uma vida melhor. “Meu pai cresceu sem qualquer contato com os familiares paternos dele. Não havia nada de material que pudesse compor uma lembrança”, diz Andressa.

Um minuto de silêncio. Ao lado da filha e do tio Antônio, Huanderson chora. Em um momento de leveza, Antônio toca no curativo do sobrinho. “Ele é minha família agora”, afirma. Com os olhos marejados, Hunderson retribui o carinho e diz ver em Antônio a figura de seu pai.

Ao fundo, um cortejo fúnebre passa. O reflexo do sol no gramado do cemitério é ofuscante. As atmosferas de morbidez e alegria se confundem. É como se a visita ao local em que dona Nenê está enterrada tivesse mudado a relação daquela família com a morte. Mais do que celebrar a vida dos que se foram, Huanderson brinda a um encontro que demorou 54 anos para se concretizar. Ele olha para a filha e faz-se entender sem precisar de palavras. É chegada a hora de seguir para o jazigo de Plínio, a poucos metros dali.

Um momento de oração e outro de silêncio. Imagens do pai de Huanderson, avô de Andressa e irmão de Antônio mostram um jovem de baixa estatura, braços fortes e lábios fartos. O cabelo bem cortado realça os traços do rosto de Plínio.

Na mão de Huanderson, um retrato do pai. “Cresci desejando conhecê-lo. A minha filha, por quem lutei dia e noite para ser um pai presente, no fim das contas, me deu um nome e intermediou o meu encontro com minha avó. Ela me deu à luz de novo”, diz.

A família se despede do túmulo de Plínio. O mecânico limpa com as mãos os pés de Andressa, sujos com a terra do cemitério. Em frente ao espelho, ele seca o rosto e checa o ferimento na cabeça. “Machuquei pela manhã enquanto me arrumava. Fico emocionado e desastrado sempre que estou prestes a tocar nesse assunto.”

De volta ao lar 

À mesa, suco, frutas e biscoitos. Ao lado de Huanderson, Antônio não para de fazer graça. Com ternura no olhar, Andressa observa. Foi na UnB (Universidade de Brasília) que a menina tímida saiu do casulo. Uma das primeiras cotistas a terem um diploma de graduação pela instituição, Andressa também foi a primeira na família dela a concluir mestrado e doutorado. A área de conhecimento foi literatura. Rap feminino e autoras pretas foram objetos de pesquisa. “Escrever é uma das minhas paixões”, diz.

No vaivém do Minhocão (corredor que liga uma ala à outra do principal prédio do campus Darcy Ribeiro), Andressa conheceu a generosa professora do departamento de história Ana Flávia Magalhães Pinto, colunista do UOL. Autora de “Escritos de liberdade” (2018), a veterana viria a ajudar a transformar a vida de sua família. “O que é mais importante que conhecer a própria história? Ana tornou-se parte da minha”, diz Andressa, incapaz de esconder a emoção ao falar da amiga.

Tudo começou no início de 2019, quando a pesquisadora se preparava para organizar o projeto “Reintegração de Posse: Narrativas da Presença Negra na História do Distrito Federal”. A ideia reuniu diversos profissionais em busca de registros de pessoas negras que ajudaram a construir Brasília —entre eles, Andressa. “Por insistência da Ana, fui atrás de descobrir um pouco mais do que sabia sobre meu avô… E sobre mim mesma.”

Huanderson desconhecia a avó Nenê e o tio Antônio. Sabia o nome do pai, Plínio, e mais nada. Ao longo de décadas vivendo em Brasília, deve ter cruzado com parte da família paterna sem saber. Foi Andressa que reconstruiu esse passado.

Em busca da própria história 

O primeiro passo foi buscar no cemitério da cidade pessoas com o nome completo do avô: Plínio José da Silva. Só havia dois mortos com esse nome enterrados lá — um deles havia partido no mesmo ano em que o pai de Huanderson. Andressa confirmou o túmulo certo quando pediu a um funcionário que informasse o nome de quem comprou o jazigo. A resposta: Auta Maria de Jesus. Com essas informações, Andressa foi até um cartório no centro de Brasília, onde conseguiu uma via da certidão de óbito de Plínio. “Foi emocionante descobrir o lugar em que meu avô estava enterrado e o nome da minha bisavó”, diz a professora.

O documento trazia também o nome de Ivo Felix, pessoa que havia testemunhado o acidente em que Plínio perdeu a vida na década de 1960. Pela internet, ela buscou o nome do operário aposentado. Graças a uma reportagem do Correio Braziliense sobre vítimas de acidentes de trânsito, publicada em 2011, outra descoberta mudou o curso da família Marques: a entrevistada principal era a professora Vânia Carvalho, filha de Ivo e conhecida de Andressa. “Eu tinha visto uma palestra da Vânia havia algum tempo, num centro espírita da cidade, em que ela falava sobre perdas irreparáveis. Ela perdeu a família num acidente de carro”, diz a filha de Huanderson.

Andressa conta ter encontrado o perfil de Vânia no Facebook. “Em um dia, ela me respondeu. Perguntei se por acaso o pai dela, seu Ivo, não tinha conhecido um rapaz chamado Plínio, de Jequié”, relata Andressa. Em seguida, numa conversa por telefone, Vânia disse a Andressa que Ivo era amigo de Plínio na Bahia. Os dois foram jogadores do DFL, time de Brasília que disputou a Taça Brasil em 1963, e dividiram um barraco no acampamento na Vila Planalto. Após a conclusão das obras, as famílias foram transferidas para regiões administrativas, como Ceilândia.

Na conversa com Vânia, entre julho e meados de agosto de 2019, Andressa descobriu que dona Nenê estava viva. “Eu tinha agora uma bisavó”, diz Andressa. Ela e o pai conheceram Auta e o tio Antônio no mesmo ano. A matriarca morreu em maio de 2021.

Virando homem 

Como um menino se torna homem sem uma figura paterna? “Eu buscava exemplos de homens respeitáveis na vizinhança. Depois, em pais de amigos e professores. Moldei minha noção sobre o papel do homem na sociedade”, diz Huanderson.

Dados apontam que filhos de pais presentes são menos propensos a sofrer atrasos cognitivos e têm menos chances de se envolverem em situações de violência na adolescência. Mas é cabível fazer uma defesa tão enfática do modelo tradicional de família, quando o IBGE estima que 60 milhões de lares no Brasil são chefiados por mães solo?

“Não”, responde Huanderson. “Minha opinião diz respeito à forma como eu idealizava a paternidade quando criança. É sobre a minha determinação de ser o melhor pai para as minhas filhas. Por elas é que fiz sacrifícios. Quis dar um motivo para elas se orgulharem. Isso se deve a exemplos como o da minha mãe. Mulheres me inspiraram a ser um homem melhor, mas não preenchiam o vazio de ter crescido sem um pai”, diz ele.

De Plínio, Huanderson herdou a cor da pele. A negritude completa o rol de qualidades de que ele se orgulha. “Tenho filhas bem-sucedidas, conheci minha família paterna depois de 54 anos e sou negro, forte e trabalhador. Se um preto não for orgulhoso de si, vão pisar nele. Eu nunca permitiria que alguém pisasse em mim”, afirma ele. Voz firme. Os lábios tremem.

De olho no futuro 

Os Cartórios de Registro Civil do Brasil mostram que, no primeiro semestre deste ano, nasceram 1,3 milhão de bebês, dos quais 86.610 não foram registrados com o sobrenome do pai. Esse número é 1,2% a mais que no mesmo período de 2018. “Graças a minha filha Andressa, posso dizer hoje que não faço mais parte dessa estatística”, diz Huanderson, que conseguiu na Justiça o direito de mudar o registro de nascimento para incluir o nome de Plínio. O processo demorou dois anos.

Com um galo protuberante na cabeça, olhar cansado e voz firme, Huanderson repete que se sente como um jovem com longa vida pela frente. “Tive que me reinventar a vida toda e não estou pronto para parar. Ainda quero ter netos, terminar o ensino médio e fazer faculdade. Mas se eu morrer hoje, está tudo bem. Este é o meu final feliz.”

Fonte: UOL

 

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