Duas mães conseguiram na Justiça de São Paulo o reconhecimento da maternidade do filho concebido por inseminação caseira. Uma das mulheres gerou o filho com material genético de doador anônimo, e o projeto parental foi compartilhado pelas duas desde o início da gestação. A decisão é da 3ª Vara Cível da Comarca de Caxias, no interior do estado.
Na ação declaratória de maternidade socioafetiva e registro de parentalidade homoafetiva com pedido de tutela antecipada do nascituro, as autoras alegaram que o sonho de constituir uma família fez com que as duas decidissem ter um filho. Para tanto, devido à falta de recursos financeiros, optaram por realizar uma inseminação caseira.
O juiz titular da vara destacou a necessidade de a Justiça observar e atender às mudanças sociais: “O Direito é um fenômeno cultural histórico e, portanto, mutável. O fenômeno jurídico está sujeito à mutabilidade de conceitos sociais e necessita estar antenado às alterações dos costumes e ditames morais. Nesse sentido, o conceito de paternidade ou de maternidade, atualmente, não se relaciona exclusivamente com a questão sexual heterodoxa”.
Destacou ainda que o Direito das Famílias contemporâneo “é visto cada vez mais com os olhos do afeto e cada vez menos sob o manto da, por vezes, fria letra da lei ou, in casu, da gélida ausência dela”. Ao “julgar afetuosamente procedente o pedido autoral”, o magistrado observou a demonstração das autoras em formar “uma família amorosa, afetuosa e feliz”.
Reprodução assistida é fenômeno crescente
Diretor nacional e segundo vice-presidente da Comissão de Assuntos Legislativos do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM, o advogado Ricardo Calderón observa que a inseminação caseira é um procedimento cada vez mais utilizado no Brasil. “Há relatos de número crescente de pessoas que vêm utilizando essa técnica informal, realizada sem o auxílio de uma clínica médica de reprodução assistida. As partes colhem o material genético do doador e fazem uma inseminação, geralmente com seringa, com algumas tentativas para conseguir o êxito da fecundação”, detalha.
Ele explica que não há previsão legal do Conselho Federal de Medicina – CFM nem mesmo do Conselho Nacional de Justiça – CNJ sobre o tema. “Não existem regramentos administrativos referente a essa inseminação caseira, visto que as normativas se destinam aos procedimentos de reprodução assistida formais, ou seja, realizados com assistência médica em clínica especializada”, explica Calderón.
O especialista aponta que a ausência de regramento e legislação tende a gerar conflitos na Justiça. “No caso das duas mães, uma delas será a biológica e, em nome dela, sairá o registro da criança com tranquilidade. Mas quanto à sua companheira, não há previsão normativa legal que permita que ela figure como uma segunda mãe da criança.”
“Essas são uma das principais questões que fazem com que casos de reprodução assistida venham desaguar no Poder Judiciário. A ausência de regulação faz com que os envolvidos que optem por essa medida tenham dificuldade no registro posterior da criança em nome do par que esteja à frente do procedimento, o que vem aparecendo com mais intensidade nas decisões judiciais sobre o tema”, analisa Calderón.
Além da legislação
O advogado elogia a decisão: “Foi tecnicamente bem elaborada e contou com sensibilidade apurada do julgador, porque percebeu que não cabe ao Poder Judiciário ignorar a realidade e negar direitos para situações que não estejam expressamente e detalhadamente previstas na nossa legislação”.
Para Ricardo Calderón, o magistrado analisou a situação com base na concepção contemporânea de família, lastreada na afetividade. “A decisão foi então sensível à realidade, deixando claro que devemos analisar os conflitos familiares não apenas sobre a ótica de uma lei específica sobre cada caso, mas também com base nos princípios que orientam o nosso sistema civil constitucional”, frisa.
O especialista também destaca o aspecto social da decisão, que observou a impossibilidade financeira do casal em custear uma reprodução assistida formal. Elas tinham o sonho de ter filhos, mas, por questões econômicas, não poderiam recorrer a uma clínica especializada no procedimento, cujos trâmites garantem o registro do bebê sem grandes divergências.
“A decisão foi baseada em dois grandes vetores: a afetividade das mães com o filho, princípio fundamental e principal elemento formador das famílias contemporâneas, seja na conjugalidade ou na parentalidade; e o melhor interesse da criança e do adolescente, princípio que deve ser o regente e assumir maior coloração, ainda mais quando envoltos recém-nascidos”, avalia Calderón.
O advogado finaliza: “Com esforço hermenêutico, a decisão conseguiu fazer justiça no caso concreto. Merece nosso elogio, até por estar totalmente conectada com as bandeiras que defende o nosso IBDFAM”.
Fonte: IBDFAM