O Conselho Federal de Medicina – CFM publicou na terça-feira (15) a Resolução 2.294, de 27 de maio de 2021, com normas éticas para aplicação de técnicas de reprodução assistida no Brasil. Entre as disposições, foram fixados limites de idade para as gestantes, requisitos para que se possa desempenhar a barriga de aluguel, exigências para realizar inseminação com material genético deixado por falecido e também a garantia dos direitos às pessoas transgêneras.
A nova resolução garante o uso das técnicas por heterossexuais, homoafetivos e transgêneros – em normativas anteriores, pessoas trans não eram citadas. Também frisa a permissão à “gestação compartilhada” pelas uniões homoafetivas femininas, situação em que o embrião obtido a partir da fecundação dos óvulos de uma mulher é transferido para o útero de sua parceira.
Permite-se ainda a reprodução assistida post mortem, desde que haja autorização específica do falecido para o uso do material biológico criopreservado, de acordo com a legislação vigente. O tema teve repercussão recentemente, com um julgamento no Superior Tribunal de Justiça – STJ que impediu uma viúva de realizar a fertilização.
O texto frisa ainda que “técnicas de reprodução assistida não podem ser aplicadas com a intenção de selecionar o sexo ou quaisquer outras características biológicas do futuro filho, exceto para evitar doenças no possível descendente”. Há também requisitos sobre doação de gametas e embriões, com restrição de idade e sigilo de identidade.
Barriga de aluguel
Em relação à cessão de útero, prática conhecida como “barriga de aluguel”, o CFM manteve a versão anterior que limitava tal possibilidade a pessoas com vínculo familiar de até quarto grau de parentesco. Agora, com a condição de que a cessionária tenha um filho biológico vivo.
Além disso, segue vedada a doação de material genético e a prática da barriga de aluguel quando motivadas por interesses financeiros ou lucrativos. A assistência à mulher que emprestou o útero até o puerpério também segue garantida, com custeio de acompanhamento e atendimento médico necessários para a paciente.
A nova resolução também frisa que a idade máxima para as candidatas à gestação é de 50 anos, podendo haver exceções com base em critérios técnicos e científicos a partir do caso concreto. Mulheres de até 37 anos poderão inserir até dois óvulos fecundados; aquelas com idade superior a 37, poderão implantar até três.
Poucas novidades
Segundo Maria Berenice Dias, vice-presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM, a Resolução 2.294/2021 do CFM traz poucas novidades. Ela destaca o uso da expressão “gestação compartilhada”, para designar algo já expresso em resolução anterior (2.168/2017), e também a inserção, agora de modo expresso, das pessoas transgêneras entre aquelas que têm o direito à reprodução assistida.
A advogada lamenta, por outro lado, o surgimento de mais uma exigência para a gravidez por substituição, uma das técnicas mais utilizadas na atualidade. Agora, há a indispensabilidade de que aquela que vai ceder o útero, além de ser parente, já tenha um filho. Trata-se de um requisito desnecessário, na opinião da especialista.
“Essa exigência de um vínculo de parentesco biológico não se justifica, principalmente porque vivemos na era dos vínculos parentais de várias origens, baseados no afeto”, comenta a advogada. “Se essa limitação decorre de uma tentativa de coibir pagamento ou remuneração, essa restrição já existe. Esse requisito acaba cerceando o direito constitucional à forma de constituir família.”
Autorização do Conselho Regional de Medicina
Para Maria Berenice Dias, também é desnecessário que, como previsto na nova normativa, sejam sujeitos à avaliação e autorização do Conselho Regional de Medicina – CRM os casos em que a cedente temporária do útero não tenha filho vivo ou não pertença à família dos pretendentes a pais.
“Isso é de uma burocracia descabida, porque o médico que atende, dentro de seu compromisso ético, tem como perceber essas assertivas feitas. Encaminhar para o CRM, o qual não faz qualquer tipo de investigação ou audiência, acaba culminando em uma autorização oca, que não diz nada”, critica a vice-presidente do IBDFAM.
Segundo a especialista, por conta dessas e de outras disposições, não há muito o que comemorar com a nova resolução. “O encaminhamento ao CRM cerceia a autonomia do médico e retarda o sonho da felicidade, já que vai levar, na prática, mais de seis meses para que se consiga essa autorização”, ressalta.
Importância das resoluções do CFM
Vice-presidente da Comissão de Biodireito e Bioética do IBDFAM, o advogado Eduardo Vasconcelos dos Santos Dantas explica que as resoluções do Conselho Federal de Medicina esclarecem dúvidas e criam balizas para os procedimentos éticos dos médicos. Contudo, não impedem que apareçam divergências na Justiça.
“Ainda há a possibilidade de surgimento de processos e questionamentos judiciais, seja sobre as próprias normas estabelecidas pelo CFM, seja pelos aspectos decorrentes da própria reprodução humana”, afirma Eduardo. Assim, as questões relativas ao tema devem seguir na pauta das discussões em Direito das Famílias e das Sucessões.
“É importante que essas normas se mantenham sempre atualizadas, como o CFM vem fazendo periodicamente, acompanhando a evolução da ciência e das novas descobertas dentro da reprodução humana assistida. Assim, permite decisões judiciais mais bem fundamentadas e com embasamento médico, técnico e científico”, frisa.
Inseminação caseira
Segundo Eduardo Dantas, os casos de inseminação caseira, recorrentes na jurisprudência, fogem do controle do CFM. “O procedimento não é feito por médicos, mas por leigos, em casa. Por isso, faz-se necessário, até por conta dessas situações, não apenas as resoluções do CFM, mas a criação de uma legislação que possa tornar mais claras as consequências dessas situações”, pontua.
Ele destaca a necessidade de projetos de lei que tratem desses casos, de acordo com a evolução e as possibilidades trazidas por essas técnicas específicas. “É algo sobre o que precisamos voltar a nos debruçar de forma séria e urgente, para que não tenhamos esse vácuo legislativo que realmente cria problemas e situações indesejadas na hora do registro das crianças”, opina.
Uma legislação específica poderia trazer segurança jurídica a casais que, sem a possibilidade de recorrer a uma clínica especializada, optam pela inseminação de forma informal, realizada no ambiente doméstico. Não raro, por não haver acompanhamento médico e registro do procedimento, esses casos acabam na Justiça logo na ocasião do registro da criança, como noticiado recentemente pelo IBDFAM.
Necessidade de um Estatuto da Reprodução Humana Assistida
Para Eduardo Dantas, a Resolução 2.294/2021 do CFM traz uma evolução natural em relação às normativas anteriores do Conselho sobre o tema. Para as próximas edições, alguns pontos podem ser lembrados, segundo o especialista. “Pode-se complementar com aspectos mais claros sobre algumas situações”, diz.
Como exemplo, ele cita a especificação do momento de se apresentar determinados documentos e da criação dos contratos entre as partes envolvidas. Também seria bem-vinda, segundo o diretor nacional do IBDFAM, uma exposição mais clara das consequências do uso de cada técnica de reprodução assistida.
“Essas exposições precisam partir não apenas das resoluções do Conselho Federal de Medicina, mas também de uma legislação muito mais específica e clara. Já passamos do momento da criação de um Estatuto da Reprodução Humana Assistida no Brasil”, conclui o advogado.
Fonte: IBDFAM