As gaúchas Luciana Reis e Lídia Brignol já tinham dois guris, o Pedro Henrique e o João Vitor, de 7 e 6 anos de idade. Mas ambos estavam registrados como filhos apenas da Luciana, e Lídia também queria ter observada, oficialmente, a sua condição de mãe. As duas queriam, na verdade, que a família constituída fosse reconhecida aos olhos de um estado que, até então, não enxergava casais homoafetivos como aptos para adotar crianças. No dia 27 de abril de 2010, após decisões favoráveis nas primeiras instâncias, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) reconheceu o direito de Lídia de ter seu nome incluído nos registros de adoção. A decisão, que completa dez anos nesta segunda-feira, é o marco que permitiu a adoção por casais gays em todo o Brasil.
Passada uma década daquela conquista, a família do município de Bagé, no interior do Rio Grande do Sul, está bem maior hoje, com a chegada de Luiz Otávio, agora com 12 anos, e Ana Helena, de 10. Irmão mais velho, Pedro Henrique já tem 17 anos e inicia uma carreira de jogador de futebol. Ele estava atuando em um time no Tocantins quando começou a crise do coronavírus, e as duas mães decidiram que o garoto tinha que voltar para passar a quarentena junto com todos, em casa. “Não pode ficar longe da gente neste momento”, justifica Lídia Brignes, que é fisioterapeuta e professora do Centro Universitário da Região da Campanha (Urcamp), em Bagé.
– Apesar de todos os efeitos prejudiciais desse vírus, temos que encontrar o lado bom. Estamos tendo mais tempo para ficar em casa com eles. Por ora, quanto mais resguardados eles ficarem, melhor. Adolescente é mais difícil de segurar em casa, a gente briga, mas vamos levando. Estamos estreitando os nossos laços – conta ela. – Família é tudo igual, só o que muda é o endereço.
Antes da decisão do STJ, em Brasília, casais homoafetivos usavam uma brecha jurídica para formar suas famílias. A lei permitia que pessoas “solteiras” adotassem crianças. Luciana e Lidia estão juntas desde 1998, mas os dois filhos mais velhos do casal foram adotados só com o nome de Luciana. Em 2006, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul permitiu que ambas fossem responsáveis legais pelas crianças, mas o Ministério Público recorreu, afirmando que união homoafetiva “não se caracteriza como entidade familiar”. A Quarta Turma do STJ negou recurso, dando segurança às crianças e apontando um rumo para julgamentos sobre a mesma questão em tribunais estaduais. Em março de 2015, julgando outra ação, o Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu a adoção por casais gays sem qualquer tipo de restrição.
– Foi uma conquista e tanto o fato de termos nossos filhos de direito – diz a psicóloga Luciana Reis. – E, de certa forma, ajudamos outros casais homoafetivos a terem seus direitos reconhecidos. Tudo isso trouxe felicidade e alegria para a gente.
– Já éramos uma família, isto não estava em questão, mas era necessário um reconhecimento civil. Eu queria dar essa segurança aos meus filhos, foi o que nos moveu – conta Lídia. – A gente leva uma vida reservada, numa cidade de 120 mil habitantes. Não esperava tanta repercussão. Foi um divisor de águas, serviu de referência para outros casais. Um passo gigante na direção de cuidar das crianças não têm o tratamento que devem ter. Criança ter que ser cuidada, e não passar a vida esperando para ser adoptada, às vezes até sendo devolvida ao orfanato.
Desde 2010, outros avanços garantiram direitos civis a casais homoafetivos no Brasil. Em 2011, o STF reconheceu a união estável entre pessoas do mesmo sexo. No ano passado, a mesma Corte equiparou ao crime de racismo as práticas de homofobia e de transfobia, tão comuns no nosso país. Tais mudanças na Justiça foram criticadas por setores conservadores da sociedade que insistem na definição de família como uma instituição formada somente a partir da união entre um homem e uma mulher. De sua casa em Bagé, conversando com o Blog do Acervo enquanto as crianças davam gargalhadas numa brincadeira qualquer perto dela, Lídia disse que esse preconceito surrado está baseado em uma visão “limitada” sobre o que é o amor.
– Esse pensamento não cabe mais na sociedade, mas algumas pessoas não estão acompanhando essa evolução. Amor não vê corpo, não tem formato.
Fonte: O Globo