Clipping – G1 – Mulheres trans paraenses relatam cotidiano de luta por direitos

Noticias

Neste Dia da Visibilidade de Transexuais e Travestis, o G1 PA entrevistou cinco mulheres que ocupam espaços de luta pela população LGBTI+ e que ajudam a trazer à tona questões como representatividade e políticas públicas

Nesta sexta-feira, 29 de janeiro, é celebrado no Brasil o Dia Nacional da Visibilidade de Transexuais e Travestis.

A data teve origem em 2004, quando um grupo de transexuais e travestis foi até o Congresso Nacional, em Brasília, para reivindicar políticas públicas, durante a campanha “Travesti e Respeito”, criada por lideranças do movimento de transexuais. A campanha resultou em uma parceria com o Programa Nacional de DST/AIDS, do Ministério da Saúde.

Diante do preconceito e da falta de políticas voltadas para a população trans e travesti, a luta pela garantia da cidadania faz parte do cotidiano de cinco mulheres, entrevistadas pelo G1.

Elas falam sobre a importância do ativismo, da arte, da ocupação de espaços de poder e da organização enquanto sociedade civil para reivindicar direitos, independente de gênero, classe social, raça ou orientação sexual.

Ativismo político e monitoramento

Isabella Santorinne é coordenadora da ONG Rede Paraense de Pessoas Trans, atuando diretamente com políticas públicas e direitos humanos, dentro da Rede Nacional de Pessoas Trans do Brasil (Rede Trans), que monitora anualmente as mortes violentas de pessoas trans e travestis. Este ano, o dossiê, lançado nesta sexta (29) em Brasília, mostra que as mortes de pessoas trans no Brasil aumentaram em mais de 50%, segundo o documento intitulado “TRANSFOBIA: a pandemia que o Brasil ainda não extinguiu e o isolamento social que conhecemos”. Dentre os 184 catalogados no país, 4 são do Pará: “é sempre muito importante lembrar dessas pessoas assassinadas porque foram assassinadas pelo simples fato de serem trans, por terem sua identidade de gênero socialmente apresentada para outras pessoas”.

O dossiê aponta também que a gravidade das ocorrências é alarmante – mais de 80% apresentaram requintes de crueldade, ou seja, a maioria das mortes ocorreu após uma sucessão de atos violentos, com tiros e facadas como a causa principal dos assassinatos. O trabalho de catalogação dos casos, segundo Santorinne, envolve ir a fundo nos casos, ouvir familiares, amigos das vítimas, porque muitas vezes as vítimas são registradas sem ter a identidade de gênero considerada.

O G1 solicitou o número de mortes de transexuais e travestis em 2019 e 2020 no Pará, mas não obteve resposta das autoridades em segurança pública do Estado até a publicação da reportagem.

“Todas essas pessoas são mortas por conta do preconceito enraizado no Brasil. O que queremos com isso é dar um pontapé para que a sociedade entenda que não queríamos falar só sobre assassinatos, mas sobre respeito. Não pedimos privilégio, mas viver numa sociedade mais justa igualitária, não só para pessoas cis héteros. Que haja consciência de que queremos viver, em harmonia, com nosso lugar ao sol. Enfim, que o preconceito contra nossos corpos acabe e que entendam que vamos existir e resistir sempre”.

Para esta sexta, a Rede Paraense de Pessoas Trans, junto a outras instituições, haviam organizado um ato de velas, sem percurso para evitar aglomerações, em memória às pessoas assassinadas, mas devido às novas restrições no Pará e ao avanço da Covid-19, a homenagem será feita de forma on-line, com um mosaico de fotos.

Ativismo, política e maternidade

Barbara Pastana divide o ativismo com a rotina de mãe solo de um garoto de 7 anos de idade, participou da criação de movimentos LGBTI+ no Pará, é responsável por uma pasta direcionada às políticas voltadas para pessoas LGBTI+ na Assembleia Legislativa do Pará (Alepa), integra o Grupo de Resistência de Travestis e Transexuais da Amazônia (Greta), a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra) e o coletivo Abrace, se consolidando como uma referência na temática transexual e travesti no estado: “visibilidade é enxergar o potencial e contribuir para uma mudança social, quebrando tabus, abrindo debates, é assim que passamos a enxergar que as mulheres não devem ser as submissas, que os negros não devem ser escravos, e que todos temos direitos e devemos ter nossa identidade reconhecida”.

O ativismo de Barbara ganhou uma nova faceta quando se tornou mãe, a partir de uma adoção espontânea em 2013. Ela conta que as barreiras para as mães trans solo são ainda mais difíceis, e por isso exigem perseverança e o dom da maternidade. “Ser mãe é dom, de criar de educar, mas isso num contexto de falta de oportunidades, de trabalho, que é o que ocorre para os LGBTs, isso também faz parte de um contexto de luta”.

“Acontece que nos foi dado o limite de ocupar espaços específicos na sociedade, como o ramo da beleza, a moda, que são trabalhos dignos, feitos com vontade e respeito, mas até mesmo nesses espaços há preconceito, e isso sem falar do preconceito dentro das nossa famílias que nos expulsam de casa. Eu sempre digo que precisamos viver a vida intensamente, pois para continuar com a nossa felicidade, temos que nos organizar enquanto comunidade e lutar pelo direito de ir além, mostrar que também podemos chegar onde quisermos”.

A maior luta para uma pessoa transexual e travesti é pelo direito de viver e pela identidade reconhecida, defende Barbara. “Quando não há respeito pelo nome social, que é previsto em lei, não se infringe somente a legislação, mas há a agressão psicológica, a vítima se sente coagida, acoada, pequena, diante da negação do direito dela de existir”.

“Até quando somos assassinadas, morremos três vezes. Primeiro, pelas facadas, tiros do criminoso movido pelo puro ódio. Depois, quando a vítima é escalpelada, tem suas próteses arrancadas. E por fim, quando morremos sem direito de sermos chamadas como queremos ser chamadas, reconhecidas como humanas”.

Da periferia à Câmara de Belém

Moradora da Cremação, em Belém, Barbara Carolinne é estudante de serviço social na Universidade Federal do Pará (UFPA) e atua em uma pasta LGBTI+ dentro da Câmara de Belém. Ela também faz parte do Grupo Greta, onde trabalha com ações voltadas para transexuais e travestis, e foi estagiária no Núcleo de Direitos Humanos da Defensoria Pública do Pará: “queremos dizer que estamos aqui, somos sociedade civil, cidadãos, pagamos impostos, estamos visíveis e precisamos ser visíveis”.

“É a primeira vez que trabalho diretamente com política, mas acho que a Câmara Municipal pode ser um espaço legislativo que ainda estou conhecendo e adentrando para ajudar a pensar leis para a população trans. Espero aprender muito e contribuir bastante, para cada vez mais dar visibilidade às nossas questões, mostrar e representar a gente, e, principalmente, lutar para garantir direitos”, afirma.

Com atendimento externo suspenso até final de fevereiro devido à Covid-19, a Câmara ainda é um espaço onde a população trans e travesti tem pouco acesso, afirma Barbara. “O nosso mandato está trazendo esse olhar para a população mais vulnerável, especialmente as mulheres e LGBTI+, tem poucas de nós na Câmara e por isso que ter uma pessoa trans, negra, em um espaço que muito nos foi negado é muito importante”.

“Essa é a representatividade que a gente precisa para nos enxergarmos nesses espaços, seja na Câmara ou em qualquer outro lugar. E ver que tem uma mulher trans trabalhando ali. É gratificante se reconhecer, porque nós precisamos dessa empregabilidade, uma chance de mostrar somos capazes”.

Arte, sensibilidade e direitos humanos

Emily Cassandra é atriz, performer, integra o coletivo de trans artistas Trasamazones e representa a Sociedade Paraense de Defesa dos Direitos Humanos (SDDH) no Comitê de Enfrentamento à LGBTfobia junto à Secretaria de Segurança Pública do Pará (Segup). Trabalha por meio da arte há dez anos, unindo informação à conscientização, além de trabalhar para a concretização do Plano Estadual de Combate à LGBTfobia e na busca por informações da população LGBTI+ em relação à violência e ao cárcere: “somos violentadas desde a escola, quando evadimos por ser motivo de chacota, somos expulsas de casa na puberdade, não conseguimos emprego, formação e nem somos inseridas na sociedade. Nossa luta diária é para encontrar e abrir brechas para garantir nossa empregabilidade, e viver com respeito e dignidade”.

Cassandra trabalha na linha do encarceramento da população LGBTI+, que na maioria das vezes é mais violentada e não possui dados que possam ajudar na ressocialização. Segundo ela, as violações de direitos humanos nos cárceres é um risco ainda maior para pessoas transexuais e travestis, pois o Estado muitas vezes não as enxerga como tal, mas sim como cisgênero (quando o gênero é o mesmo que o sexo). “Como sociedade civil, tentamos buscar informações, dados, números, quantas pessoas estão encarceradas, quantas sofrem tortura, como a gente consegue dialogar para criar políticas públicas para essa população encarcerada. É um olhar do combate à LGBTfobia tanto fora dos presídios como dentro, combatendo a falta de respostas quando se fala em população LGBTI+”.

“Quando a polícia não vai a fundo em uma investigação minuciosa sobre os crimes relacionados à essa população, e o caso é registrado como outra coisa, ignorando a LGBTfobia, a transfobia, quando na verdade temos crime de ódio. Nesse sentido, é o que a gente está tentando mudar com esse comitê, trabalhando dentro das delegacias, para que sejam marcadas essas especificidades”.

No campo da arte, a atuação de Emily versa sobre as relações da ‘transgeneridade’, segundo ela levando informações sobre quem são as pessoas trans e travestis, explorando a multiplicidade envolvendo gênero e orientação sexual. Também já ministrou oficinas teatrais sobre ressignificação de territórios em áreas de reserva extrativista, aldeias indígenas e municípios do interior do Pará.

Ela atribui tanto o preconceito e quanto a ausência de políticas à marginalização. Para Cassandra, o dia 29 de janeiro é um dia necessário para dialogar sobre o assunto. “Estamos tentando sensibilizar as pessoas, mostrar que a gente existe, nós estamos vivas e, principalmente, que a nossa população não pode ficar só nos números de assassinatos, mas de mulheres travestis acadêmicas, doutoras, construindo políticas públicas, ocupando espaços de poder, vereadoras, e o que vier”.

“Não queremos mais acender velas em memória, mas que a gente possa acender vela pelas que morreram por idade, não por assassinatos cruéis, que a gente não sofra mais com as perdas e não pensemos que seremos as próximas e que a qualquer momento podemos ser assassinadas”.

Direito à Justiça e direito à identidade

Adriana Lopes foi uma das primeiras mulheres trans no Brasil a ganhar um processo contra convênio de saúde privada para ter acesso ao procedimento hormonal, após o processo dela ser interrompido porque o plano negou autorização para consulta especializada em ginecologia. Segundo a Defensoria Pública do Pará, ela também obteve a primeira retificação extrajudicial de nome e gênero no registro civil de mulher trans no estado. Militante política e dos direitos humanos, estudante de direito, foi candidata a vereadora, ela atualmente trabalha em órgão municipal de Belém, que oferece assessoria jurídica e psicológico a mulheres em vulnerabilidade: “gênero ou orientação não têm a ver com capacidade, lugar de mulher é onde ela quiser”.

“Eu acho que foi o primeiro caso no Brasil todo, porque quando saiu a decisão foi matéria em vários jornais, inclusive nacionais, e depois disso muitas outras mulheres trans fizeram, procuraram a Justiça em busca de procedimentos para resguardar os direitos delas. A importância disso tudo é mostrar que todas as pessoas têm o direito à individualidade, a ser quem são”.

Para Adriana, ocupar espaços que buscam garantir políticas públicas é um privilégio e uma responsabilidade. “É importante que pessoas trans ocuparem lugares de poder, na gestão pública, e tem que ser assim mesmo, que ocupar mais, se mostrar mais, não ficaremos fadadas àquela coisa antiga, de achar que podem nos determinar até onde podemos ir”.

Sobre o dia da visibilidade transexual e travesti, Adriana conta que é um dia de luta. “Ainda temos no Brasil muitos assassinatos, mas isso vai de contra aos dados de acesso à pornografia de pessoas trans, isso comprova a eterna contrariedade, a hipocrisia, pois ao mesmo tempo que essas mulheres são desprezadas, elas também são desejadas. O mais importante é que nesse dia lembramos que podemos, sim, ocupar espaços de poder, em podemos mostrar a nossa intelectualidade, que também somos dotadas de intelectualidades e a hora é agora”.

Fonte: G1

Comente