No artigo anterior1, vimos como nasceram as entidades registradoras e se inaugurou um novo regime registral das garantias reais e mobiliárias ao lado do sistema tradicional de publicidade jurídica. Na sequência, veremos como as forças econômicas e corporativas buscaram pespegar estas mudanças na ordem civil, subvertendo os paradigmas do direito brasileiro.
A MP 897/2019 – a entidade registradora “registral”
A tramitação do PLC 30/2019 (MP 897/2019, convertida afinal na lei 13.986/2020) revelaria o movimento concentrado, e muito bem orquestrado, no sentido de se buscar a modificação dos paradigmas do sistema de registro de direitos e de distribuição de competências e funções notariais e registrais. No relatório final do dito PLC 30, apresentado pelo deputado PEDRO LUPION, houve a tentativa de incluir, na redação derradeira, a criação de uma Central Nacional de Registro Imobiliário (art. 51)2. Na complementação de voto, o nobre deputado ainda alteraria a redação do art. 51 “para permitir à Central Nacional de Registro de Imóveis atuar como entidade registradora, observada a legislação específica”. A emenda assim achava-se redigida:
“art. 51 do PLV: alteração do caput para permitir à Central Nacional de Registro de Imóveis atuar como entidade registradora, observada a legislação específica; alteração no §2° para conferir maior abrangência ao recebimento eletrônico de títulos pela Central Nacional de Registro de Imóveis; supressão do §3º, pois o ato notarial somente adquire eficácia após sua confirmação pelo registro; e alteração do §7°, renumerado para §6°, para atribuir ao Conselho Nacional de Justiça a fiscalização e o funcionamento da Central Nacional de Registro de Imóveis”3.
A ideia de uma entidade registradora, ou como preferia o Deputado DENIS BEZERRA – Central Nacional de Gravames -, se insinuava nos debates legislativos de modo discreto. Assim a concebia o ilustre deputado (e notário) do Ceará:
“Por fim, a criação de uma central nacional de gravames atende a uma necessidade do mercado de crédito, para que o agente financiador possa obter, de maneira rápida e efetiva, informações sobre a capacidade de pagamento e grau de endividamento do produtor, de forma a avaliar mais assertivamente o risco de crédito e as garantias ofertadas e ter uma plataforma de acesso aos cartórios. Quanto mais fácil e transparente foram essas informações, mas rápida será a concessão do crédito e mais fortes serão as garantias recebidas pelo financiador”.
Com fundamento nesta justificativa, o deputado apresentaria sua emenda, cujo teor era o seguinte:
“Art. XXX. Fica criada a Central Nacional de Gravames organizada pelos registradores de imóveis, em cooperação com os registradores de títulos e documentos e tabeliães de protesto, e que compreenderá os registros de garantias, gravames, constrições judiciais, indisponibilidades e protestos, indexados a partir do número de inscrição no Cadastro de Pessoas Físicas do Ministério da Fazenda (CPF), ou número de inscrição no Cadastro Geral de Contribuintes do Ministério da Fazenda (CNPJ). Parágrafo único. Até 31 de julho de 2022 todos os atos anteriores constantes e vigentes até a edição desta lei serão inseridos na base de dados da Central Nacional de Gravames”4.
Todo o minucioso arcabouço então criado acabou soçobrando por um despacho lacônico do Presidente da Mesa Diretora:
“Comunico ao Plenário que a Medida Provisória n. 897/2019 recebeu 350 (trezentas e cinquenta) emendas parlamentares e que a Comissão Mista, no Parecer n. 1/2019, concluiu pela apresentação do Projeto de Lei de Conversão n. 30/2019.
Na esteira do entendimento externado pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 5.127, ocorrido em 15 de outubro de 2015, e nos termos do artigo 7º, II, da Lei Complementar n. 95/1998 e dos artigos 55, parágrafo único, e 125 do Regimento Interno da Câmara dos Deputados – RICD, considero como não escritos o § 2º do art. 19 e os arts 51, 62 e 63 do Projeto de Lei de Conversão n. 30/2019, por não guardarem relação temática com a Medida Provisória n. 897/2019″5.
Assim terminaria esta aventura de centralização – de modo melancólico e infrutífero. A proposta que havia sido veiculada pelo Dep. LUPION acabou por revelar pontos de contato com a MP 1.085/2021, como veremos a seu tempo. A comparação entre elas pode ser bastante instrutiva por permitir retraçar a autoria das propostas que seriam consumadas no futuro com o advento da MP 1.085/2021, depois convertida na lei 14.382/2022.
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1 JACOMINO. Sérgio. Vésperas do SERP – uma ideia fora do lugar – parte II. São Paulo: Migalhas Notariais e Registrais.
2 Parecer CN 1/2019 da Comissão Mista do CN. Relator Dep. PEDRO LUPION in Diário da Câmara dos Deputados, n. 221, de 10/12/2019, p. 1.311.
3 Complementação de voto do Dep. PEDRO LUPION, loc. cit. p. 1.375. A leitura atenta do relatório revela os íntimos pontos de contato com as propostas ensejadoras da MP 1.085/2021.
4 Emenda 222, de 8/10/2019, Dep. DENIS BEZERRA. In Diário da Câmara dos Deputados n. 221, de 10/12/2019, p. 973-4. A CNG – Central Nacional de Gravames não vingou na lei 14.382/2022, embora seus apologistas ainda insistam na sua consagração – seja na regulamentação ou mesmo na prática do SERP. ABELHA. André. CHALHUB. Melhim Namem. VITALE. Oliver. Org. Sistema Eletrônico de Registros Públicos – lei 14.382 de 27 de junho de 2022 comentada e comparada, p. 27, n. 4.
5 Dep. CÉSAR MAIA, despacho de 11 de fevereiro de 2020. O projeto seria aprovado na sessão de 18/02/2020 e encaminhada ao Senado Federal, convertido na lei 13.986/2020.
Sérgio Jacomino: Quinto Oficial de Registro de Imóveis da Capital de São Paulo. Presidente do NEAR – Núcleo de Estudos Avançados do SREI. Ex-presidente do Instituto de Registro Imobiliário do Brasil (IRIB) nos anos 2002/2004, 2005/2006, 2017/2018 e 2019/2020. Doutor em Direito Civil pela UNESP (2005) e especialista em Direito Registral Imobiliário pela Universidade de Córdoba, Espanha. Membro honorário do CeNoR – Centro de Estudos Notariais e Registais da Universidade de Coimbra.
Fonte: Migalhas