Por Raquel Helena Valesi
Nossa Constituição Federal condiciona proteção jurídica à família não importando o modelo do qual ela se reveste. O vértice legal é a proteção do núcleo familiar e, que tem como ponto de partida, e também seu término, a tutela da pessoa humana.
Se é na família que se promove os valores afetivos e de solidariedade humana, não se deve conferir tratamentos diferentes às pessoas de seus membros seja de uma filiação advinda de forma biológica, civil ou socioafetiva.
Por isso, os princípios inerentes à convivência familiar, baseada no afeto recíproco entre os integrantes deve se estender ao direito sucessório de forma igualitária, sob pena de contrariar o ditame constitucional.
Para atribuição do devido a cada um dos herdeiros, para a prevenção por preterição entre co-herdeiros e ainda para diminuição de ações judiciais para acesso ao quinhão hereditário, seria importante haver mecanismo jurídico de imediata referência à filiação que associe os pais aos filhos biológicos, adotivos ou socioafetivos, declarados ou reconhecidos, porque assim, evitaria que alguns descendentes e sua estirpe, não tivessem acesso ao acervo hereditário a que tenham direito, por herança.
E qual mecanismo poderia haver? Pela proposta da anotação registrária dos descendentes em assento de nascimento dos pais, lege ferenda.
Reflexão inicial: a importância do registro civil reside na comprovação da autenticidade e publicidade sobre dados relativos ao estado da pessoa, cujos dados serão, na maioria das vezes, essenciais para eficácia da relação jurídica como se lê do próprio artigo 1º da Lei 6.015/73. Ele prepondera na preocupação com o tráfico de informações e no comprometimento com a garantia dos direitos fundamentais e ao final, aos próprios direitos da personalidade.
Logo, o registro civil das pessoas naturais confere suporte legal à família, isso porque não existindo o registro, também juridicamente se tornam inexistentes as pessoas, as relações de parentalidade e seu acesso a todos os seus direitos subjetivos. A legalidade se dá por meio do registro, através do qual se atribuem os direitos e obrigações.
Diante disso, vê-se que o registro civil confere acesso à busca da identidade familiar e, pelo registro de nascimento, surgirá documento originário da pessoa natural. Ele servirá de base para emissão de todos os demais assentos (casamento, óbito, etc.). Nele, se contém os elementos do estado da pessoa natural (estado individual) que individualizam a pessoa para a prática de atos e realização de negócios. E tão importante quanto ao registro de nascimento está o registro da extinção da pessoa natural, ou seja, a lavratura do registro de óbito conduzirá o acesso efetivo à legítima pelos descendentes do de cujus.
E ainda. O sistema de registro civil se mantém também atualizado com outros atos que tornam o registro mais completo. Esses atos podem ser visualizados pelas averbações que alteram o conteúdo do estado da pessoa ou, os efeitos deste registro, mas também, pelas anotações as quais indicam que existe um outro ato de registro civil relativo à mesma pessoa, o que permite que a publicidade seja completa e que uma certidão atualizada indique a existência e a localização de atos registrários (registro ou averbação) posteriores que alteram o estado da pessoa natural.
Essas anotações registrárias apenas produzem efeitos meramente publicitários e conduzem início de prova da existência de outro registro ou averbação. A anotação do óbito de uma pessoa no seu registro de nascimento e de casamento confere início à prova do óbito, mas não faz prova plena dele, isso só se dará com a certidão de óbito.
Como se vê, as anotações formam uma “rede” que permite a busca por todos os registros de seus atos e fatos da vida civil. Elas são indispensáveis à plena publicidade, segurança e certeza dos assentamentos do registro civil. Na maioria das vezes, as alterações do estado civil das pessoas naturais não se verificam no mesmo local onde foi lavrado, originariamente, o assento de nascimento, e que devem constar averbações e anotações concernentes a todas as modificações do estado civil. As anotações eram comunicadas entre cartórios por meio de cartas, mas hoje é feito por meio da CRC-comunicações (artigo 106, § único da lei 6.015/73).
A anotação registrária, portanto, é elemento de indicação que faz remissão a atos anteriormente praticados, através dela se faz o cruzamento das informações sobre os principais fatos da vida civil da pessoa natural. E aqui concentra-se nosso interesse neste ato registrário chamado anotação.
Se a anotação registrária reserva a ideia de dar notícia de atos realizados no registro civil pela pessoa natural, mostrando os principais fatos que houveram em sua vida (meramente publicitários), mas que são considerados início de prova sobre a existência de outro registro ou averbação os quais produzem efeitos comprobatórios, por que então não se reconhecer e considerar a possibilidade do registro na sua inteireza e possibilitar a anotação dos filhos no assento de nascimento dos pais e, na de óbito ulteriormente, para que assim possa-se identificar de forma irrefutável quem são os descendentes para reconhecimento imediato das pessoas partícipes da sucessão legítima daquela pessoa natural que anotou (através do Oficial do Cartório) os filhos em seu livro de nascimento e, que posteriormente, após sua morte, poderão ser anotados, pelo registrador, no livro de óbito do de cujus?
Caso haja a morte da pessoa natural, será realizado o registro do seu óbito com as anotações de sua morte em seu assento de nascimento e, no de casamento, se houver. Os filhos do de cujus, naturalmente serão os primeiros a receber a herança, mas para isso, deverão se apresentar em inventário a ser formalizado (judicial ou extrajudicial) por meio de suas certidões de nascimento ou casamento atualizadas. Caso alguns (ou todos) dos filhos não tenham conhecimento da morte do pai/mãe e, não foram declarados na certidão de óbito à época, pelo declarante, pois sequer os irmãos (bilaterais ou unilaterais, socioafetivo, reconhecidos) tios, avós, sobrinhos, se conhecem e nem possuem seus registros em cartório idêntico ao do de cujus, dificultará a esse descendente vivo e registrado de ter acesso à legítima quando desconhecido, culposa ou dolosamente, pelos outros descendentes, no momento da distribuição dos quinhões.
Se não fosse só por este motivo que a anotação registrária oferece segurança jurídica de acesso à legítima, também pode servir de prevenção, pois, sabendo quem é o herdeiro, de imediato, evita que mais tarde aquele que não participou da partilha perca bens ou as rendas sobre os bens de sua legítima.
E mais. Vale lembrar que todos os descendentes do doador, responderão pela contemplação do não favorecido, pois o herdeiro necessário não poderá ser prejudicado podendo buscar sua quota na herança de quem quer que seja (artigo 1.824 do Código Civil).
De fato, como não é possível o conhecimento de todos os filhos/irmãos de plano, caso houvesse a possibilidade da apresentação de certidões – do transmitente/herdeiro de cota de sua herança – expedidas pelo Cartório de Registro Civil, potencialmente geraria a confiança e boa-fé ao adquirente resguardando-o de futuros pleitos judiciais, bem como ao herdeiro/vendedor de indenizações futuras dos outros co-herdeiros.
Numa situação exemplificativa de ação investigatória de paternidade cumulada com petição de herança e, a paternidade sendo reconhecida, o bem imóvel alienado a terceiros de boa-fé pelos os outros co-herdeiros (consoante o disposto no art. 1.826 do Código Civil) só deveriam eles restituir os frutos percebidos aos outros herdeiros após caracterizada sua má-fé. Passados vários anos entre a abertura da sucessão e o cálculo da cota de cada herdeiro na herança, dever-se-á realizar perícia para avaliação dos bens segundo critérios atuais, tendo em vista a falta de certeza de correspondência dos montantes utilizados na partilha com os de mercado, assim como a ausência de parâmetros seguros para aferição dos valores históricos.
Assim sendo, a apuração de perdas e danos será dificultosa e merecerá formulação jurídica de prevenção de dano em casos como esse.
Se não fosse só pelos argumentos acima, também ainda é possível, pedido de indenização (pelos co-herdeiros preteridos) no tocante à utilização de bens alheios (artigo 186 Código Civil). As normas de enriquecimento injustificado, no que couber, também são aplicáveis (artigo 884 Código Civil) visto que se privou da posse os demais herdeiros do bem que faziam jus. E ainda que de ordem moral, havendo prejuízo ao herdeiro (relíquias de família, valor afeição) serão indenizáveis a título de perdas e danos.
Sabendo-se, ainda, que a legítima dos herdeiros necessários, ou metade indisponível, enquanto vivo o doador, não pode ser atingida por nenhuma hipótese de liberalidade, às doações irregulares – após apuradas as falsas transferências onerosas – merecerão apuração de danos causados à privação dos bens.
Diante disso, a anotação registrária dos filhos nos assentos de nascimento de seus pais ampliaria as chances de conhecer de plano, de forma irrefutável, os co-herdeiros. Ao conhecer de plano os co-herdeiros que, até aquele momento encontram-se registrados e anotados nos assentos de nascimento e de óbito dos pais, evitaria o dolo por parte de um deles em sonegar bens da legítima (art. 1.992 Código Civil) ao que caberia responder perante os demais co-herdeiros pelo valor do bem, mais perdas e danos (art. 1.995 Código Civil)[1].
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1 VALESI, Raquel Helena. Efetividade de acesso à legítima pelo registro civil. Rio de Janeiro:Processo, 2019.
Raquel Helena Valesi: Doutora e Mestre em Direito Civil pela PUC/SP, Pós Graduada em Direito Processual Civil pela PUC/SP. Professora de Direito Civil na Universidade São Judas Tadeu e de Cursos de Extensão na Escola Superior de Advocacia e Escola Paulista de Direito. Membro da Comissão de Direito Imobiliário da OAB/SP e IBERC. Parecerista de Revistas Jurídicas e Consultora Jurídica em São Paulo
Fonte: Migalhas