Por Fernanda Maria Alves Gomes
Em abril, a comissão responsável por apresentar o anteprojeto de revisão do Código Civil aprovou a versão final do Livro de Direito da Família. Dentre as propostas, substituiu-se a habilitação de casamento civil pelo procedimento pré-nupcial que não estipula prazo de validade da autorização para as núpcias, não exige declaração ou presença de testemunhas, nem publicação de edital de proclamas ou apresentação de certidões atualizadas. A leitura dos arts. 1525 a 1532[1] traz inegável fragilidade em comparação ao procedimento vigente.
Importante recapitular que recentemente a habilitação foi substancialmente alterada na Lei de Registros Públicos (arts. 67 a 69 da Lei 6015/73), abolindo o prazo de 15 dias dos proclamas e o parecer do Ministério Público, sendo possível casar-se em até 5 dias após a entrega da documentação no cartório de registro civil de pessoas naturais.
Tal agilidade não compromete a segurança jurídica, já que são apresentadas certidões recentes que comprovam o estado civil dos nubentes, testemunhas declaram a inexistência de impedimentos e com a publicação eletrônica do edital de proclamas, eventuais impugnações podem ser feitas na medida em que se garante a publicidade da união civil.
Ademais, a autorização para o casamento dura 90 dias, impondo nova habilitação após esse período. A existência de um prazo de validade é fundamental, considerando a facilidade atual não só para se casar, mas para o divórcio e mudança de prenome ou sobrenome.
Na proposta do novo procedimento pré-nupcial consta que o oficial de registro fará buscas em sistema eletrônico de dados pessoais, acerca da idade núbil, do estado civil dos nubentes e de sua capacidade de exercício. Ora, é fato que mera consulta à base de dados, por mais completa que fosse (e que na prática não é), não comprova o estado civil nem a capacidade do indivíduo. Providenciar a comprovação da própria qualificação civil é uma obrigação dos nubentes, assim como é responsabilidade de cada oficial certificar as informações que constam nos registros de seu acervo.
A prova de fatos jurídicos relevantes sobre a pessoa natural se dá por meio da certidão do assento civil (art. 216 CC). O sistema eletrônico é uma ferramenta que permite a localização do cartório e os índices dos registros: livro, folha e termo. Justamente por isso, essa consulta não fornece dados ou detém força probatória suficiente que permita a realização de atos registrais, tampouco pode substituir as certidões atualizadas.
Corroborando esse entendimento, o ministro Luís Felipe Salomão, corregedor-nacional de Justiça, ao se manifestar no Pedido de Providências 0002796-85.2023.2.00.0000 em decisão de 20/04/24, afirmou:
De mais a mais, conforme bem pontuou a ARPEN BRASIL, a parte requerente incorre em equívoco no tocante a desnecessidade de pleitear certidões atualizadas do Registro Civil de Pessoas Naturais para lavratura de escrituras públicas ou outros atos pertinentes ao serviço notarial acaso houvesse a possibilidade de consulta à Central de Informações de Registro Civil (CRC), visto que a informação disponibilizada nos módulos requeridos não é dotada de fé pública, visto que consistem em simples transcrições de índices e campos informacionais importantes para a mera localização dos atos do acervo, mas que não se revestem da autenticidade, conteúdo e conferência próprias de quando se emite a certidão. (grifei)
Não exigir certidão recente é tornar vulnerável o novo matrimônio, visto que não há informações suficientes nem garantia de que os dados consultados estejam atualizados. Ademais, não é admissível que o cartório que realizar essa habilitação, posteriormente se veja responsável por celebrar um ato nulo por não ter tido acesso a uma anotação de casamento, alteração de nome ou interdição no registro de nascimento por exemplo. Lembremos que a realidade dos mais de 7.222 cartórios de registro civil de pessoas naturais é desigual e milhares deles sequer são autossustentáveis, muitas vezes sem acesso regular à internet.
Cabe esclarecer que essa consulta ao sistema não se equipara à certificação eletrônica da união estável, procedimento que comporta produção de provas para averiguar a data de início ou término de uma situação de fato[2]. Além disso, mesmo em relação à união estável a previsão para que se verifique junto a Central de Registro Civil (CRC) a existência de termo declaratório anterior é inócua na medida em que pode existir escritura pública lavrada em tabelionato de notas.
Outro ponto controverso é a previsão de verificação de eventual impedimento matrimonial junto ao Sistema Nacional de Produção de Embriões (SisEmbrio). Atualmente não há essa permissão de acesso, sendo que a Lei 11.105/2005 não prevê compartilhamento com cartórios. Note-se que os dados referentes aos receptores e doadores, anônimos ou não, são sigilosos e apenas excepcionalmente as informações podem ser fornecidas, resguardando-lhes a identidade civil.
Por outro lado, alguns impedimentos legais somente pessoas próximas ao casal podem ter ciência, como por exemplo o cônjuge sobrevivente ter intenção de se casar com o condenado pelo homicídio de seu ex-consorte, o que justifica a manutenção das testemunhas. É evidente que os declarantes podem omitir ou falsear informações, mas serão responsáveis penal e civilmente caso isso ocorra.
Ainda em relação a esse ponto, é fundamental a publicação do edital eletrônico, que divulga a intenção matrimonial do casal e amplia a possibilidade de que eventual impedimento se torne conhecido. O casamento civil é um ato formal, público, razão pela qual a publicização eletrônica dos proclamas permite que qualquer pessoa mediante uma simples busca na internet tenha conhecimento do fato e, se for o caso, possa impugnar.
Verifica-se que o procedimento em vigor não é burocrático, privilegia a celeridade e segurança jurídica, não cabendo nova alteração que prejudique essa conquista. Ademais, a proposta é incoerente na medida em que manteve a possibilidade de oposição por terceiros (nova redação do art. 1.532), mas na prática como isso ocorreria sem a exigência de testemunhas ou publicação de edital?
Ilógico transferir integralmente ao oficial de registro a responsabilidade de certificar a ausência de impedimentos, confirmar o estado civil e capacidade dos nubentes, e ainda estipular a gratuidade desse procedimento. A título de comparação, não seria razoável exigir que em um concurso público, a banca examinadora tivesse a obrigação de pesquisar nos sites dos tribunais se consta ou não algum processo contra o candidato já que a CF/88 assegura o princípio da inocência. Ou na lavratura de uma escritura pública imobiliária, que o tabelionato de notas fosse o responsável por providenciar gratuitamente toda a documentação e atestar a regularidade do imóvel.
Pela leitura do art. 226 da CF/88 percebe-se claro incentivo à realização do casamento civil, fruto da segurança que o ato registral proporciona, sendo dissociado da intenção do constituinte uma alteração que traga vulnerabilidade ao instituto jurídico mais tradicional da sociedade brasileira. O mínimo que se espera de um casal que voluntariamente deseja o matrimônio é que comprove de forma idônea que se encontra apto para o ato. Esse cuidado não é burocracia, é segurança.
Casamento “vapt vupt” ou estilo “Las Vegas” não atende à seriedade que o ato requer no contexto social brasileiro, que para muitas pessoas é a realização de um sonho na esfera afetiva, ideal de felicidade ou o ponto de partida para a formação de uma família. No cotidiano do cartório, observamos que enquanto providenciam a documentação e até mesmo no intervalo legal de cinco dias para a cerimônia, há casais que desistem de casar-se. Portanto, um “tempo de reflexão”, ainda que curto, é necessário para o amadurecimento da decisão.
Conclui-se que as formalidades atuais para o casamento civil são suficientes para garantir a celeridade e a segurança jurídica que o ato registral requer e não necessitam de nova modificação, sendo bem-vinda no máximo a modificação da nomenclatura, substituindo a expressão “habilitação” por procedimento pré-nupcial.
[1] Proposta novo Código Civil: Art. 1.525. A celebração do casamento será precedida de procedimento pré-nupcial, requerido pelos nubentes, que se identificarão por meio físico ou virtual, ao oficial do Cartório de Registro Civil. Art. 1.526. O oficial do Cartório de Registro Civil das Pessoas Naturais fará buscas no sistema eletrônico de dados pessoais, acerca da idade núbil, do estado civil dos nubentes e de sua capacidade de exercício. Art. 1.527. De posse dos dados exigidos neste artigo, o oficial registrador fará a verificação junto ao Sistema Nacional de Produção de Embriões, sobre possível impedimento para o casamento. Art. 1.528. Qualquer dos nubentes, ou ambos, podem ser representados por procurador, devendo a procuração, que terá eficácia de noventa dias, ser outorgada por instrumento público, com poderes especiais. Art. 1.529. No caso da hipótese do inciso II do art. 4o deste Código, quando o nubente desejar ser auxiliado por apoiadores, o requerimento de que cuida o art. 1.525 deverá também ser firmado por dois apoiadores que tenham contribuído para a tomada de decisão, nos termos do art. 1.783-E. Art. 1.530. O requerimento de que cuida o art. 1.525 deverá ser firmado pelos representantes legais do nubente com mais de dezesseis e menos de dezoito anos de idade. Art. 1.531. O oficial do Cartório após a verificação de todos os dados certificará estarem os nubentes aptos para a celebração do casamento. Art. 1.532. Os impedimentos para o casamento podem ser opostos por meio físico ou virtual em declaração escrita, assinada e instruída com as provas do fato alegado ou com a indicação do lugar onde possam ser obtidas. Parágrafo único. Podem os nubentes fazer prova contrária dos fatos alegados e, verificada a falsidade das alegações, promover as ações civis e criminais contra o oponente de má-fé.
[2] Provimento CNJ 149/23 Seção IV Do Procedimento de Certificação Eletrônica da União Estável Art. 553. O procedimento de certificação eletrônica de união estável realizado perante oficial de registro civil autoriza a indicação das datas de início e, se for o caso, de fim da união estável no registro e é de natureza facultativa (art. 70-A, § 6.º, Lei n. 6.015, de 1973). § 1.º O procedimento inicia-se com pedido expresso dos companheiros para que conste do registro as datas de início ou de fim da união estável, pedido que poderá ser eletrônico ou não. § 2.º Para comprovar as datas de início ou, se for o caso, de fim da união estável, os companheiros valer-se-ão de todos os meios probatórios em direito admitidos. § 3.º O registrador entrevistará os companheiros e, se houver, as testemunhas para verificar a plausibilidade do pedido. § 4.º A entrevista deverá ser reduzida a termo e assinada pelo registrador e pelos entrevistados. § 5.º Havendo suspeitas de falsidade da declaração ou de fraude, o registrador poderá exigir provas adicionais. § 6.º O registrador decidirá fundamentadamente o pedido. § 7.º No caso de indeferimento do pedido, os companheiros poderão requerer ao registrador a suscitação de dúvida dentro do prazo de 15 dias da ciência, nos termos do art. 198 e art. 296 da Lei n. 6.015, de 1973. § 8.º O registrador deverá arquivar os autos do procedimento. § 9.º É dispensado o procedimento de certificação eletrônica de união estável nas hipóteses em que este Capítulo admite a indicação das datas de início e de fim da união estável no registro de reconhecimento ou de dissolução da união estável.
Fonte: Jota