Por Fernanda Maria Alves Gomes
Para muitas pessoas, o casamento é um objetivo, a realização de um sonho na esfera afetiva, ideal de felicidade ou o ponto de partida para a formação de uma família. O artigo 226 da Constituição de 1988 estabeleceu como premissa que o casamento é civil e gratuita a sua celebração. Também definiu que o casamento religioso pode ter efeito civil e que deve ser facilitada a conversão da união estável em casamento. Percebe-se que para o legislador constituinte o casamento destaca-se como a base da família e incentiva-se sua realização.
Para a celebração do casamento civil, o artigo 98 da CF/88 dispôs sobre a criação da justiça de paz, remunerada, composta de cidadãos eleitos pelo voto direto, universal e secreto, com mandato de quatro anos e competência para, na forma da lei, celebrar casamentos, verificar, de ofício ou em face de impugnação apresentada, o processo de habilitação e exercer atribuições conciliatórias, sem caráter jurisdicional, além de outras previstas em lei.
Assim, pelas diretrizes constitucionais, uma vez instalada, o juiz de paz exerceria cargo público remunerado, após ser eleito para mandato de quatro anos, e com competência não só para a celebração de casamentos civis, mas também para realizar conciliações e outros atos.
No intuito de agilizar a implementação da justiça de paz, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) expediu a Recomendação nº 16 em 27/05/2008, para que os Tribunais de Justiça dos estados e do Distrito Federal, no prazo de um ano, encaminhassem projeto de lei às assembleias legislativas normatizando as eleições e a remuneração do juiz de paz; a atuação perante as Varas de Família e a atividade conciliatória.
Posteriormente, ao analisar o anteprojeto de lei do Distrito Federal, o CNJ se manifestou:
“PARECER DE MÉRITO SOBRE ANTEPROJETO DE LEI. ORGANIZAÇÃO DA JUSTIÇA DE PAZ DO DISTRITO FEDERAL E TERRITÓRIOS. 1. Trata-se de proposta para organização da Justiça de Paz do Distrito Federal e Territórios e da criação de 18 cargos de juiz de paz. 2. Parecer favorável do Departamento de Acompanhamento Orçamentário do CNJ pela adequação orçamentária da proposta. 3. A finalidade do anteprojeto está de acordo com as diretrizes fixadas por este Conselho e as atribuições do juiz de paz atendem perfeitamente à Recomendação nº 16 do CNJ. 4. Não há vício de competência. O envio de proposta tendente a regulamentar a função de juiz de paz é de competência dos Tribunais de Justiça, conforme reiterada jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. 5. No que se refere à idade mínima e à filiação partidária (artigo 14, §3º da Constituição Federal), o anteprojeto dispõe em seu artigo 7º, caput: ‘para concorrer às eleições, o candidato deverá atender às exigências constitucionais e legais de elegibilidade e compatibilidade’, em consonância, portanto, ao que já decidiu o Supremo Tribunal Federal 6. Acertadas as disposições relativas à perda de mandato: uma vez que juiz de paz não exerce jurisdição, não se lhe devem ser estendidas as garantias ínsitas à magistratura. Por essa razão, ao prever, em seu artigo 13, que o juiz de paz poderá perder o mandado em virtude de processo administrativo disciplinar, amolda-se o anteprojeto ao sistema constitucional. 7. A estrutura remuneratória, fixada por meio de subsídio (artigo 17, p. 6, DOC2), está de acordo com o mandamento constitucional (artigo 39, §4º da Constituição) e também dentro da margem de discricionariedade a que aludem diversos precedentes do STF. 8. A permissão de acumular o cargo de juiz de paz com outro cargo, emprego ou função pública, contida no artigo 18 do anteprojeto, extrapola dos estritos limites fixados pela disciplina constitucional. 5. Parecer favorável, em parte, ao anteprojeto, condicionando sua apresentação ao Congresso Nacional à supressão da possibilidade de acumular o cargo de juiz de paz com outro cargo, emprego ou função pública”. (CNJ — PAM — Parecer de Mérito sobre Anteprojeto de Lei — 0005505-50.2010.2.00.0000 — relator NEVES AMORIM — 133ª Sessão Ordinária — julgado em 30/08/2011).
Nesse parecer, o CNJ detalhou alguns pontos da justiça de paz: a) iniciativa de lei dos Tribunais de Justiça; b) observância das exigências constitucionais e legais de elegibilidade e compatibilidade para o cargo; c) não extensão das garantias da magistratura; d) remuneração fixada por meio de subsídio; e) não acumulação com outro cargo, emprego ou função pública.
Em que pese a recomendação, o fato é que a justiça de paz não foi regulamentada em todos os estados da Federação e as celebrações civis têm sido realizadas pelo que se pode identificar como juiz de casamento. Frise-se que ainda que seja comum utilizar a terminologia juiz de paz, se a justiça de paz propriamente dita não foi implantada no estado, as nomeações de pessoas com a única finalidade de celebrar casamentos devem ser consideradas temporárias, precárias e livres de incompatibilidades, que só se justificarão quando existir legalmente o cargo público remunerado.
Esse entendimento é fundamental, pois a não instalação das justiças de paz tem ocasionado decisões contraditórias e levado alguns Tribunais de Justiça a querer impor restrições e requisitos que só teriam sentido se o juiz de paz estivesse no exercício de cargo público.
Por esse motivo é importante distinguir duas situações: do juiz de paz eleito, remunerado pelos cofres públicos e que exerce mandato, daqueles cidadãos nomeados exclusivamente para a celebração de casamentos civis, que não são remunerados ou, em alguns casos, apenas recebem ajuda de custo dos nubentes.
Considerando essa diferença fundamental, vejamos algumas normas estaduais:
No Distrito Federal, o Provimento nº 2 de 18/02/2014 estabelece que enquanto não for publicada lei que disponha sobre sua eleição, os juízes de paz serão indicados pelo corregedor e nomeados pelo presidente do Tribunal de Justiça, para atuar junto aos serviços de registro civil como múnus público [1], de forma voluntária e sem remuneração. Há previsão de titulares e suplentes, regras de substituição, impedimento, afastamento por doença e remoção de juiz de paz titular pelo critério de antiguidade e dos suplentes por conveniência e oportunidade da Administração Pública. Registre-se que o Provimento utiliza a terminologia juiz de paz, mas na prática, como a justiça de paz não foi instalada, essa atribuição se restringe a de juiz de casamentos.
Quanto aos requisitos para nomeação pelo presidente do TJ-DF, o provimento brasiliense exige a apresentação de antecedentes criminais e certidões negativas da Justiça local, federal, eleitoral, militar e de protesto; currículo atualizado; fotos; três referências que atestem sua conduta e idoneidade; residência no DF ou entorno; e prova de ser bacharel em Direito.
Em relação à natureza jurídica da atividade desempenhada e a eventual incompatibilidade para o exercício de outras profissões, em consulta formulada por um juiz de paz sobre a atuação como celebrante, o TJ-DF assim se manifestou:
“Além do mais, o que o celebrante faz quando utiliza uma ‘vitrine virtual’ nada mais é que um tipo de comércio, pois essa função é privada e pode ser um meio de se sustentar, todavia, em nenhum momento essa pode ser confundida com a função de juiz de paz, que é considerado um agente honorífico, vinculado sempre a alguma serventia extrajudicial e que configura uma prestação de serviço voluntário e limitado à celebração de casamentos, que, até o momento, ainda é graciosa no Distrito Federal, razão pela qual não pode haver qualquer confusão entre elas, o que significa dizer que o juiz de paz não pode utilizar sua função para divulgar o cargo de celebrante, ou vice-versa, pois soa estranho vincular o trabalho privado da pessoa, como cerimonialista, servidor público ou qualquer outra profissão que exerça, com a atividade de juiz de paz, que é de natureza pública e extremamente relevante.
(…)
Desta feita, esta Coordenadoria sugere que, caso acolhida por Vossa Excelência a presente manifestação, seja ela encaminhada ao consulente e a todos os Juízes de Paz do Distrito Federal para que tenham conhecimento de que a atividade que exercem decorre de uma atuação como agente honorífico, para a qual não há remuneração no âmbito do Distrito Federal enquanto não aprovado o projeto de Lei 3411/12, e que não se confunde com outras atividades privadas e/ou públicas eventual exercidas por eles. Sugere-se que essa manifestação também seja encaminhada a todos os Oficiais de Registro Civil das Pessoas Naturais do Distrito Federal, para conhecimento. Despacho COCIEX 2309448 SEI 0005894/2022 / pg. 9″ [2].
O TJ-DF claramente faz distinção entre as duas situações: como funcionará quando a justiça de paz for implementada e houver remuneração, e o momento atual, em que a atividade de celebrar casamentos é exercida graciosamente. Outro ponto de destaque é que, atualmente, por não ser remunerada, entende-se que não há impedimento para o exercício cumulativo de outras atividades profissionais privadas ou públicas. Até porque não seria razoável e coerente exigir dedicação exclusiva para o exercício de uma atividade honorífica e gratuita.
No estado do Pará, a Constituição Estadual faz a seguinte previsão:
“Artigo 174. Fica criada a justiça de paz, remunerada, composta de cidadãos eleitos pelo voto direto, universal e secreto, com mandato de quatro anos e competência para, na forma da lei, celebrar casamentos, verificar, de ofício ou em face de impugnação apresentada, o processo de habilitação e exercer atribuições conciliatórias, sem caráter jurisdicional, além de outras previstas na legislação.
Artigo 175. Lei de iniciativa do Tribunal de Justiça regulará a justiça de paz, designará o dia para a eleição dos juízes, apontará os requisitos que deverão preencher os candidatos, estabelecerá a tabela de custas, que reverterão para os cofres públicos, observados os seguintes princípios:
I – o candidato a juiz de paz deverá ter sido aprovado em curso de noções de Direito de Família, organizado pelo juiz da comarca;
II – o servidor público em exercício de mandato de juiz de paz será afastado do cargo, emprego ou função e seu tempo de serviço será contado para todos os efeitos legais, exceto para promoção por merecimento, mas, para efeito de benefício previdenciário, os valores serão determinados como se no exercício estivesse;
III – o juiz de paz só poderá ser reeleito uma vez;
IV – haverá, pelo menos, um juiz de paz em cada sede municipal e distrital.”
Como ainda não há lei regulamentando a justiça de paz, aplica-se o Provimento Conjunto n° 002/2019, Código de Normas dos Serviços Notariais e de Registro do estado do Pará:
“Artigo 674. O exercício efetivo da função de juiz de paz constitui serviço público relevante.
Artigo 675. Aos Juízes de Paz compete celebrar Casamentos nos Distritos e na sede da Comarca, se ausente o Juiz de Direito ou quando autorizado por este, e outras atribuições que vierem a ser fixadas por Lei Estadual, na conformidade que preveem os artigos 174 e 175 da Constituição Estadual.
Artigo 676. Enquanto não regulamentada a Justiça de Paz, o juiz de direito competente poderá designar juízes de paz para realização dos casamentos, sem ônus ao Tribunal de Justiça e as partes interessadas.”
Percebe-se que quando a justiça de paz estiver funcionando no Pará, a atividade será remunerada pelos cofres públicos e, por esse motivo, o servidor público que a exercer ficará afastado. Como atualmente não há justiça de paz remunerada, a competência para celebrar casamentos é do juiz de Direito ou de quem for por ele autorizado, não havendo impedimentos para essa designação. Provavelmente o TJ-PA não impôs restrições por ter ciência da dificuldade de se obter interessados em realizar a atividade de forma adequada e gratuitamente.
No estado do Rio de Janeiro, ante a omissão legislativa e a necessidade de se regulamentar situações concretas do cotidiano, o Conselho da Magistratura publicou a Resolução nº 06/1997:
“Artigo 3º – São requisitos básicos para o exercício, ainda que temporário, da função de Juiz de Paz:
I – ser indicado pela Autoridade Judiciária competente para o registro civil das pessoas naturais (RCPN);
II – estar quite com suas obrigações eleitorais e militares, quando for o caso;
III – ser bacharel em direito;
IV – ser residente no distrito ou na circunscrição onde exercerá as suas atribuições, ou em área contígua;
V – não ostentar antecedentes criminais e gozar de representação e conceito na comunidade, com idoneidade notória e conduta ilibada;
VI – não pertencer a órgãos de direção ou ação de partido político;
VII – não ostentar a condição de serventuário, funcionário ou servidor da Justiça sujeito à disciplina da Lei nº 793/84 (artigo 6°, §2°).
Parágrafo único – O Conselho da Magistratura poderá, à vista das peculiaridades e deficiências regionais, dispensar, de forma excepcional e transitória, a observância de qualquer dos requisitos previstos nos incisos anteriores, a fim de que não haja prejuízo à continuidade do serviço.
Artigo 4º – O Juiz de Paz será remunerado única e exclusivamente pelo ato que praticar, nos exatos moldes do Regimento de Custas editado pela Corregedoria-Geral da Justiça, admitindo-se, de forma excepcional, o reembolso de despesas com locomoção e hospedagem, nas hipóteses do artigo 7º desta Resolução, até o máximo de um salário mínimo vigente.
Seguindo as diretrizes acima, o Código de Normas Extrajudiciais da Corregedoria Geral de Justiça do Estado do Rio de Janeiro detalhou:
Artigo 746. Os juízes de paz são agentes honoríficos, auxiliares, não integrantes da magistratura de carreira, exercentes de função pública delegada, sem caráter jurisdicional, e subordinados à fiscalização, à hierarquia e à disciplina do Poder Judiciário (artigo 1º da Resolução CM/TJ nº 6/1997).
Artigo 747. O juiz de paz será nomeado pelo Presidente do Tribunal de Justiça.
Artigo 748. Na circunscrição em que não haja juiz de paz ou suplente nomeado, a designação poderá recair sobre preposto do oficial de registro civil de pessoas naturais, atendidos os requisitos exigidos em ato regulamentar.
Parágrafo único. Não havendo preposto que preencha os requisitos, poderá a designação recair sobre o próprio oficial.
Artigo 750. Durante o período de vacância da função de juiz de paz, o juiz de direito com competência em registros públicos poderá designar ad hoc, pelo prazo improrrogável de 60 dias (artigos 3º e 8º da Resolução CM/TJ 06/1997).
Parágrafo único. Em hipótese de excepcional urgência decorrente de fortuito ou força maior, poderá o juiz de direito nomear o oficial do registro civil das pessoas naturais para celebração de atos de casamento civil determinados, até que se efetive a nomeação do ad hoc.
Artigo 751. O juiz de paz será remunerado pelo ato de verificação realizado na fase de habilitação, cabendo ao oficial de registro receber dos nubentes os emolumentos correspondentes e repassá-lo diretamente àquele por meio de depósito bancário.
(…)
§ 4º. Admitir-se-á, de forma excepcional, o reembolso ao juiz de paz de despesas com locomoção, nas hipóteses de realização de casamento fora da sede, até o máximo de um salário mínimo, caso em que o valor lhe será pago diretamente pelos nubentes.”
Percebe-se que também no Rio de Janeiro, atentos à dificuldade de se encontrar interessados com a desenvoltura necessária para a celebração de casamentos, estabeleceu-se a remuneração pela atuação no processo de habilitação e deslocamentos, sendo que o pagamento é feito pelos nubentes, ou seja, não onera os cofres públicos. E as únicas vedações ao exercício da atividade são para servidores da justiça e partidários políticos; sendo expressamente permitida a designação de funcionários do cartório e do próprio oficial de registro civil.
É evidente que o TJ-RJ está ciente da dificuldade de se encontrar voluntários aptos para desempenhar satisfatoriamente a atividade e de que a ausência do juiz no dia do casamento ou eventual manifestação preconceituosa ou ofensiva durante a celebração pode ocasionar danos às partes e a responsabilização objetiva do Estado.
No Ceará também não foi instalada a justiça de paz prevista no Código de Organização Judiciária, razão pela qual os cartórios têm que indicar cidadãos que se disponham a realizar a atividade gratuitamente, já que é expressamente vedada a cobrança ou percepção de custas, emolumentos ou taxa de qualquer natureza. Vejamos a previsão normativa:
“Artigo 106. A Justiça de Paz, de caráter temporário, composta de cidadãos eleitos pelo voto direto, universal e secreto, com mandato de quatro anos, remunerados pelos cofres públicos, tem competência para verificar, de ofício ou em face de impugnação apresentada, o processo de habilitação de casamento, celebrar casamentos civis e exercer atribuições conciliatórias, sem caráter jurisdicional.
§1º São requisitos para o exercício do cargo:
a) nacionalidade brasileira;
b) pleno exercício dos direitos políticos;
c) idade mínima de 21 anos;
d) escolaridade equivalente ao ensino médio completo;
e) aptidão física e mental;
f) idoneidade moral;
g) certificado de participação e aproveitamento em curso específico ministrado pela Escola Superior da Magistratura do estado do Ceará;
h) residência na sede do distrito para o qual concorrer.
§8º É vedada a cobrança ou percepção de custas, emolumentos ou taxa de qualquer natureza nos Juizados de Paz.
§10. É vedado ao Juiz de Paz exercer atividade político partidária”.
Verifica-se que quando for implementada a justiça de paz, a lei cearense fez apenas uma restrição quanto à nomeação de pessoas que seria quem exerce atividade político partidária. Permite, portanto, que cidadãos em geral, inclusive funcionários do cartório e o próprio oficial celebrem casamentos civis.
Certamente o legislador tem conhecimento da dificuldade de se encontrar pessoas aptas a desempenhar essa atividade gratuita, que configura múnus público e é tão significativa para os casais que optam pelo casamento civil, bem como entende os riscos que podem advir de uma celebração mal conduzida ou que indevidamente contemple manifestações homofóbicas, preconceito racial ou religioso por exemplo.
No estado de São Paulo, as normas de serviço dos cartórios extrajudiciais elegem uma única restrição:
“79. Na falta ou impedimento do Juiz de casamento ou de seu Suplente, o Oficial de Registro Civil das Pessoas Naturais ou Escrevente Autorizado indicará outra pessoa idônea para o ato, dentre os eleitores residentes no distrito, não pertencentes a órgão de direção ou de ação de partido político, dotados de requisitos compatíveis de ordem moral e cultural, que poderá ser nomeado pelo Juiz Corregedor Permanente, mediante portaria prévia ou por meio de ratificação.”
Importante mencionar que em outros estados, como Espírito Santo e Rio Grande do Norte, também não há impedimento para que funcionários dos cartórios celebrem casamentos. Inclusive os próprios oficiais podem ser designados já que não há vedação constitucional ou legal e trata-se do desempenho de função honorífica.
Essa opção inclusive parece ser a mais adequada à regular prestação do serviço, já que o oficial e o funcionário em regra se encontram nas dependências do cartório e podem celebrar casamentos sempre que necessário. Ademais, a relação de trabalho já existente previne futuros litígios trabalhistas, o que pode ocorrer com juízes nomeados pelos tribunais e que posteriormente pleiteiam, alguns com êxito, o reconhecimento do vínculo laboral junto ao cartório.
Em relação a essa possibilidade, cabe esclarecer que o titular de cartório não exerce função pública, é uma delegação exercida em caráter privado (artigo 236 CF/1988) [3], não havendo incompatibilidade com o exercício de múnus público ou função honorífica, como por exemplo o de juiz de casamento, mesário ou jurado (inclusive atividades permitidas e pontuadas na prova de títulos desse tipo de concurso público). Menos fundamento existe para se proibir a nomeação de funcionários do cartório, sejam eles substitutos ou não, para celebrar casamentos, pois não são detentores de delegação: juridicamente são empregados contratados pelo regime da CLT.
A Lei nº 8935/94 no artigo 3º é clara ao dispor que o oficial de registro ou registrador é profissional do direito, dotado de fé pública, a quem é delegado o exercício da atividade notarial e de registro. Portanto, delegação não é função pública. Nesse sentido inúmeros acórdãos do Supremo Tribunal Federal, em especial o da ADI 2.602 que literalmente afirma: não ocupam cargos públicos, não são servidores públicos, a atividade é exercida em caráter privado. Não há qualquer menção ou vinculação da atividade com cargo, emprego ou função pública.
Ora, se o titular do cartório não exerce função pública, muito menos seu funcionário, que é empregado celetista (artigo 20 e 21 da Lei nº 8.935/94). A subordinação do funcionário ou substituto ao titular do cartório por uma relação de natureza trabalhista, desconfigura qualquer possibilidade de vínculo com o Poder Público e consequentemente com eventual atividade de natureza pública. Portanto, inconsistente e sem fundamento qualquer vedação que os impeça de celebrar casamentos.
Infelizmente a inércia em se implementar a justiça de paz tem causado interpretações variadas e algumas equivocadas, como estados que proíbem a cumulação desse múnus público e gratuito com o exercício de qualquer cargo, emprego ou função pública. Ora: não é razoável exigir que o cidadão, que tem desenvoltura e vontade de celebrar casamentos, o faça gratuitamente e ao mesmo tempo impedi-lo de exercer outra atividade profissional. Tal vedação somente se justificaria se houvesse remuneração pelos cofres públicos, o que não ocorre na maioria dos estados.
Pelo exposto, nota-se que o cerne da questão para identificar a natureza jurídica da atividade é saber se a justiça de paz foi implantada ou não, se há remuneração e, em caso positivo, se o pagamento é feito pelos cofres públicos. Assim: quando houver justiça de paz funcionando no estado, o juiz de paz eleito será detentor de cargo público.
Caso não haja justiça de paz, mas esteja prevista a remuneração pelos cofres públicos, mais adequado será classificar como função pública. Por outro lado, a mera nomeação para celebrar gratuitamente casamentos configura função honorífica, que a toda evidência não será incompatível com o exercício de cargo, emprego ou função pública.
Conclui-se que a realidade da grande maioria dos estados é de que a justiça de paz não foi implementada e o que se tem na prática é a figura de um juiz de casamentos, que exerce a atividade de forma temporária e excepcional, enquanto não ocorre a instalação e, por não ser remunerado pelos cofres públicos, configura múnus público.
Assim, impor restrições e impedimentos sem fundamento jurídico é pouco razoável e pode dificultar o exercício de uma atividade que exige desenvoltura e aptidão especial para a celebração de ato extremamente significativo na vida dos casais, bem como sobrecarregar os juízes de direito, que em regra também tem essa atribuição nas leis estaduais de organização judiciária.
[1] Classificação segundo Maria Sylvia Zanella Di Pietro (Direito Administrativo. 32ª ed. rev., atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2019, p. 684) Particulares em Colaboração com o Poder Público:
Designados: são os agentes honoríficos de Hely Lopes Meirelles, aqueles que atuam quando convocados pelo Estado para exercerem múnus público, sob pena de sanção, como os mesários, os jurados e os convocados para o serviço militar obrigatório.
Delegados: atuam na prestação de serviços públicos mediante delegação do Estado, como os titulares das serventias dos Cartórios, os leiloeiros e os agentes das concessionárias e permissionárias de serviço público (sempre as pessoas físicas, e não a jurídica).
[2] https://www.tjdft.jus.br/informacoes/extrajudicial/juizes-de-paz-do-distrito-federal/informativos/diversos/p-a-0005894-2022.pdf
[3] STF. ADI 2602. Pleno. EMENTA: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. PROVIMENTO N. 055/2001 DO CORREGEDOR-GERAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE MINAS GERAIS. NOTÁRIOS E REGISTRADORES. REGIME JURÍDICO DOS SERVIDORES PÚBLICOS. INAPLICABILIDADE. EMENDA CONSTITUCIONAL N. 20/98. EXERCÍCIO DE ATIVIDADE EM CARÁTER PRIVADO POR DELEGAÇÃO DO PODER PÚBLICO. INAPLICABILIDADE DA APOSENTADORIA COMPULSÓRIA AOS SETENTA ANOS. INCONSTITUCIONALIDADE. 1. O artigo 40, §1º, inciso II, da Constituição do Brasil, na redação que lhe foi conferida pela EC 20/98, está restrito aos cargos efetivos da União, dos Estados-membros , do Distrito Federal e dos Municípios — incluídas as autarquias e fundações. 2. Os serviços de registros públicos, cartorários e notariais são exercidos em caráter privado por delegação do Poder Público — serviço público não-privativo. 3. Os notários e os registradores exercem atividade estatal, entretanto não são titulares de cargo público efetivo, tampouco ocupam cargo público. Não são servidores públicos, não lhes alcançando a compulsoriedade imposta pelo mencionado artigo 40 da CB/88 — aposentadoria compulsória aos setenta anos de idade. 4. Ação direta de inconstitucionalidade julgada procedente. -Acórdãos citados:RE 178236 (RTJ-162/772), ADI 1531 MC (RTJ-181/54), ADI 1751, ADI 2602 MC (RTJ-187/177), ADI 2891 MC (RTJ-186/182). — Veja Informativos STF 369 e 410. Número de páginas: (70). Análise: 25/04/06, (JBM).
Fernanda Maria Alves Gomes é registradora civil em Fortaleza (CE) e mestre em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco.
Fonte: ConJur