A Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) foi saudada como uma grande inovação no que diz respeito ao tratamento de dados pessoais. E com razão. Trata-se de uma lei moderna e em consonância com as melhores práticas adotadas hoje no mundo, em especial no modelo europeu que serviu de inspiração.
Mas, passados quase dois anos da promulgação da lei, pouco se avançou, e pior, há sinais cada vez mais contraditórios de como e quando a LGPD entrará em vigor. Na redação original, previa-se que a lei deveria entrar em vigor após 18 meses da data de sua publicação, prazo já alterado em julho de 2019, seguindo-se novo adiantamento, para 14 de agosto de 2020, ou seja, nesta sexta-feira. E aqui está o cerne do problema; aliás outro a atormentar as empresas, já muito maltratadas por esse evento avassalador e totalmente inesperado que é a Covid-19: um verdadeiro imbróglio entre Executivo e Legislativo federais promete ser fonte abundante de insegurança jurídica para o empresariado.
A razão disso é que, por conta da pandemia, tramitou no Congresso Nacional o Projeto de Lei 1.179/20, que dentre algumas regras transitórias para as relações jurídicas privadas, alterava novamente a entrada em vigor da LGPD, desta vez para o dia 1º de janeiro de 2021, além de postergar a aplicação das sanções para agosto de 2021. No entanto, por meio de um destaque aprovado no Senado, a entrada em vigor da LGPD foi mantida para o dia 14 de agosto de 2020, adiando-se tão somente a aplicação das penalidades previstas na LGPD.
O Projeto de Lei foi aprovado parcialmente pelo presidente da República, deixando de fora a questão da entrada em vigor da LGPD. Isso, porque, no meio dessas discussões foi editada a Medida Provisória 959/20 (MP 959) que, dentre outros assuntos, prorroga a entrada em vigor da LGPD para o dia 3 de maio de 2021. A MP 959 ainda está em vigência, mas está prestes a caducar e não parece haver sinais no Congresso de que ela será analisada em tempo hábil. Portanto, diante deste cenário, é razoável supor que a LGPD será considerada como vigente e eficaz a partir de 14 de agosto de 2020 (inclusive).
Mas a confusão não termina aí: Do ponto de vista prático, a MP 959 irá caducar no dia 27 de agosto de 2020, portanto, depois da data prevista da entrada em vigor da LGPD. Assim, haverá a necessidade de o Congresso promulgar um decreto determinando o que deverá ser feito neste período compreendido entre a suposta entrada em vigor da lei e a caducidade da MP 959.
Essa situação esdrúxula surpreendeu o mercado, focado na sobrevivência diante do cataclismo da Covid-19. É verdade que muitas empresas não deram a devida importância para a LGPD e foram adiando a implementação das medidas necessárias, estratégia que se tornou lógica a partir do primeiro trimestre de 2020. Em conversas com as empresas dos mais variados setores, é possível constatar que poucas estão preparadas e as que se encontram mais aptas em lidar com o monumental desafio da LGPD são as multinacionais, que já enfrentaram situações semelhantes, em especial na Europa.
O cenário não é nada animador. Tampouco são as medidas – ou a falta delas – do Governo Federal. Até o momento a Autoridade Nacional de Proteção de Dados sequer foi criada. A sua função não seria só de aplicar e fiscalizar o cumprimento da LGPD, mas também de ajudar as empresas a se estruturarem neste período de adaptação.
Por tudo isso, mesmo que a LGPD entre em vigor no dia 14, haverá muito mais questões do que respostas. Na ausência da Autoridade Nacional de Proteção de Dados, o terreno será fértil para incontáveis embates jurídicos. Ainda que as sanções administrativas decorrentes da LGPD só possam ser aplicadas a partir de agosto de 2021, nada impede que ações coletivas e/ou individuais sejam propostas pelas mais diversas razões, ao amparo das numerosas obrigações previstas na LGPD.
Um exemplo de como um dispositivo legal dependente, porém desacompanhado, de uma infraestrutura normativa pode causar confusão e prejuízos é o limite de juros reais em 12%, fixado no parágrafo 3º do artigo 192, da Constituição Federal (revogado pela EC nº 40/2003, após decisão do Supremo Tribunal Federal pela não autoaplicabilidade do citado limite). O impacto no sistema financeiro, pego de surpresa por considerar que referido limite não era autoaplicável, dependendo da edição de uma lei complementar voltada para o mercado financeiro, foi devastador.
Em suma, as perspectivas, nas atuais condições, não são positivas, mas, o governo pode ajudar a mitigar os efeitos negativos. O Executivo e o Congresso devem trabalhar para prevenir ou remediar adequadamente essa situação, potencialmente grave para as empresas, que se desenha em curtíssimo prazo. Mais uma vez, a LGPD é um avanço positivo, desvirtuado por inépcia política. E esse tipo de inépcia e os resultados que trazem são verdadeiros repelentes de investimento estrangeiro, insumo que nenhum país pode se dar ao luxo de esnobar.
Fonte: O Estado de São Paulo