Artigo – Desjudicialização da execução civil: a quem atribuir as funções de agente de execução? – Por Paulo Henrique dos Santos Lucon, Luciano Vianna Araújo e Rogéria Fagundes Dotti

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O Conselho Nacional de Justiça, no relatório “Justiça em Números 2020”, apontou a existência de 77 milhões de processos pendentes, dos quais 55,8% se referem à fase de execução [1], isto é, cerca de 42 milhões de processos. Isso significa que mais da metade das demandas que tramitam no país envolvem atividades de natureza executiva, sejam fundadas em título judicial (cumprimento de sentença), seja em título extrajudicial. Há, portanto, grande dispêndio de tempo e de esforço dos magistrados para atos que poderiam ser realizados fora do âmbito do Poder Judiciário.

O tema é da maior atualidade e relevância. Deve-se analisar e debater no Brasil as propostas legislativas [2] para a desjudicialização da execução civil e a fiscal. Entre elas, tramita no Congresso Nacional o Projeto de Lei nº 6204, de autoria da senadora Soraya Thronicke, o qual propõe a “desjudicialização das execuções civis fundadas em títulos extrajudiciais e cumprimento de sentenças condenatórias de quantia certa”. O projeto contou com a colaboração dos professores Flavia Pereira Ribeiro e Joel Dias Figueira Junior, ambos processualistas e estudiosos da matéria, bem como de André Gomes Netto, tabelião de Notas e de Protesto de Títulos. Em síntese, o que se pretende é a redução das atividades do Poder Judiciário em processos que, em verdade, dependem muito mais de iniciativas burocráticas. Isso é extremamente positivo para o sistema processual.

Em recente artigo, os professores Arruda Alvim e Joel Figueira Jr. chamaram a atenção para vários pontos importantes desse projeto de lei. Destacaram também a sua constitucionalidade. Têm eles, nesse ponto, total razão. Isso porque a desjudicialização das execuções constitui uma opção legislativa que não viola qualquer garantia constitucional. Com efeito, o direito fundamental de acesso à jurisdição (CF, artigo 5º, XXXV) adquire no sistema atual uma ressignificação. Ele não se limita mais às atividades exclusivas do Poder Judiciário. Há mais de 30 anos, Kazuo Watanabe já sustentava não se tratar apenas “de possibilitar o acesso à justiça enquanto instituição estatal, e sim de viabilizar o acesso à ordem jurídica justa” [3]. Nos últimos anos, foram inúmeros os exemplos de desjudicialização. Basta lembrar o divórcio e o inventário extrajudicial (Lei 11.441/2007), o registro de nascimento após transcorrido o prazo legal (Lei 11.790/2008), a usucapião especial (Lei 11.977/2009) e os artigos 1.071, 571, 610, §1º, 703, §2º, e 733 do Código de Processo Civil de 2015. Disso decorre que, se o legislador pode desjudicializar a própria resolução de conflitos, com mais razão pode fazê-lo em relação ao procedimento executivo, cuja maioria dos atos sequer possui natureza tipicamente jurisdicional. Diga-se que os atos executivos já são praticados pelo oficial de Justiça (penhora), pelo avaliador judicial (avaliação) e pelo leiloeiro público (leilão judicial), sob o controle do juiz.

Importante também destacar que o PL 6204 não impede o controle do Poder Judiciário em relação aos atos executivos, sempre que provocado pelas partes (suscitação de dúvida) ou pelo denominado agente de execução (consulta). É o que se vê na redação dos artigos 20 e 21. Ou seja, embora desjudicializada, a execução deve continuar sob o controle e a fiscalização dos magistrados. Aqui, vale uma sugestão: deve-se utilizar a plataforma digital do Poder Judiciário para a execução desjudicializada, sob pena de se perder tempo a cada suscitação de dúvida ou de consulta ao Poder Judiciário. Além disso, não se pode imaginar que cada agente de execução tenha a sua própria plataforma digital. Lembre-se que, quando se iniciou a digitalização dos processos, cada Estado, cada região possuía a própria plataforma digital. Em alguns casos, o primeiro grau e o segundo grau da mesma região possuíam plataforma digitais distintas. Não se pode incorrer no mesmo erro.

Nesse ponto, defende-se que a execução desjudicializada seja distribuída perante o Poder Judiciário, cabendo ao juiz, mediante sorteio, distribuir para um dos agentes de execução aptos. Dessa forma, a plataforma digital já será a do Poder Judiciário, o que tornará mais fácil o controle pelo juiz dos atos do agente de execução.

A crítica, contudo, diz respeito à impossibilidade de recurso em face das decisões judiciais proferidas no curso do procedimento. O §2º do artigo 20 e o §2º do artigo 21 do PL 6204 estabelecem, respectivamente, que as decisões que julgarem a consulta e a suscitação de dúvida serão irrecorríveis. Isso evidentemente não pode ser admitido. Observe-se que o Código de Processo Civil, mesmo quando quis limitar o cabimento do agravo de instrumento, manteve a ampla recorribilidade de todas as decisões proferidas no cumprimento de sentença e no processo de execução (CPC, artigo 1015, parágrafo único). Logo, desjudicializar a execução, impedindo o recurso ao tribunal, implicaria grave retrocesso ao sistema processual vigente. Ademais, o sistema de precedentes, tão caro ao Código de Processo Civil de 2015, exige que se profiram decisões pelos Tribunais de Justiça e pelos Tribunais Regionais Federais, bem como pelo Superior Tribunal de Justiça e pelo Supremo Tribunal Federal. Ora, se não houver recurso, a questão ficará restrita ao juiz da causa.

O PL 6204 apresenta ainda outra exigência injustificável: a obrigatoriedade do prévio protesto do título judicial ou extrajudicial como condição para a instauração do procedimento (artigos 6º e 14 do PL 6204). Trata-se, evidentemente, de requisito inaceitável, uma vez que o protesto sempre foi uma opção do credor, jamais um pressuposto para o início do processo executivo. Tal imposição cria um novo e desnecessário ônus financeiro ao exequente, frequentemente combalido pelo inadimplemento.

Mas, o maior problema do Projeto de Lei 6204 reside na atribuição das funções de agente de execução aos tabeliães de protesto. O agente de execução é justamente a pessoa a quem compete a “realização de todas as diligências do processo de execução, nestas se incluindo citações, notificações, publicações, acto de penhora, venda e pagamento” [4]. Nesse ponto, o artigo 3º prevê: “Ao tabelião de protesto compete, exclusivamente, além de suas atribuições regulamentares, o exercício das funções de agente de execução e assim será denominado para os fins desta lei.”

Isso gera um gravíssimo risco de falta de operosidade e efetividade para as execuções civis. Saliente-se que o próprio projeto de lei reconhece a atual ausência de capacitação dos tabeliães de protesto para o desempenho das atividades de execução. Tanto é assim que prevê no artigo 22 a realização desta capacitação, determinado que isso deverá ser concluído até a entrada em vigor da lei.

Fonte: Conjur

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