Pluralidade e complexidade são características que marcam a família brasileira do século XXI, com evidentes e imprevisíveis repercussões no Direito de Família. O pluralismo das instituições familiares é tão patente, que o elenco das entidades familiares posto no artigo 226 do pergaminho constitucional transformou-se em rol meramente exemplificativo, a comportar indefinidas formas de constituição de família, todas elas reconhecidas e protegidas pelo Estado.
O ponto em comum a todas, especialmente no que toca às famílias não tipificadas, lembrando que a Constituição só se refere ao casamento, à união estável e à família monoparental, é a afetividade, pois se muitas são as famílias em seus diversos arranjos familiares próprios, inegável que qualquer uma delas terá a sua formação pressuposta pelo afeto, como elo que as une e reúne.
Jean Carbonnier celebrizou a frase « À chacun sa famille, à chacun son droit », que podemos traduzir por a cada um a sua família e a cada um o seu direito, ou melhor, a cada família o seu Direito de Família. Em que pese a força dos determinismos sociais e das aspirações ideológicas, as famílias permanecem de fato diferenciadas e é oportuno que possam, uma a uma, encontrar, dentro da legislação, o seu modelo adequado. E nesse ponto a diversidade de modelos familiares é salutar ao sistema jurídico como um todo, afinal o direito civil é a área da autonomia privada por excelência, ainda que no direito de família as regras de ordem pública abundem.
A propósito, o conceito legal de família que melhor traduz esse pluralismo foi posto na Lei nº 11.340/2006 (Lei Maria da Penha), que define a família como sendo a comunidade formada, em face da parentalidade legal ou admitida, por afinidade, ou por vontade expressa (art. 5º, II). Em outras palavras, a família hodierna é construída por aqueles que se sentem e se tratam como família, desde que haja vínculos de afeto e limitada às noções de parentesco e conjugalidade. Familiares são pessoas que manifestam a vontade (juridicamente reconhecida) de integrar a mesma família, de onde podemos concluir que família é, acima de tudo, locus da autonomia privada (assim como o é o direito privado) que se manifesta pela afetividade. E todas essas famílias merecem a proteção e o reconhecimento do Estado, mas não necessariamente de forma igualitária. Se existe pluralidade na constituição da família, por óbvio, também deve haver pluralidade na forma e na extensão da tutela estatal.
A diversificação dos formatos de família decorre da multiplicidade de arranjos conjugais, da diversidade de formas de filiação e das plúrimas possibilidades de divisão do exercício da autoridade e dos deveres parentais. Não pretendemos aqui, naturalmente, aprofundar, muito menos esgotar, as espécies de famílias, unicamente refletir, à vol d’oiseau, sobre as conexões entre a família conjugal e a família parental.
Fala-se em famílias conjugais, para aludir aos relacionamentos afetivos interpessoais fundados na convivência more uxorio, nos quais a sexualidade é elemento preponderante, como sucede no casamento ou na união estável (homo ou heteroafetivos) ou, ainda, nas chamadas uniões paralelas e poliafetivas[1]. Já a família parental é a que se estabelece a partir dos vínculos entre pai e mãe e seus descendentes, ou seja, fundada na relação de filiação, qualquer que seja a sua origem, biológica, adotiva, decorrente das técnicas heterólogas de reprodução assistida ou socioafetiva[2]. Entre as manifestações da família parental, podemos mencionar as famílias biparentais, monoparentais, pluriparentais e coparentais. Biparentais são aqueles grupamentos originados a partir da relação de conjugalidade tradicional, entre duas pessoas e seus filhos. Monoparentais as comunidades formadas por apenas por um dos pais e os respectivos descendentes. É o caso do divorciado e seus filhos. Pluriparentais quando há mais de duas pessoas na linha reta ascendente do parentesco de primeiro grau, normalmente decorrentes do reconhecimento de filiação socioafetiva em simultaneidade com outro vínculo filial (biológico ou registral). É o caso de a pessoa ter um pai registral e socioafetivo, além do pai biológico e de seu registro civil constarão dois pais e uma mãe.
Já as famílias coparentais são caracterizadas pela inexistência de conjugalidade e cuja formação se deve ao único propósito de concretizar um projeto parental de paternidade ou maternidade, valendo-se, em grande parte dos casos, das técnicas de reprodução medicamente assistida. O casal parental, ensina Jones Figueiredo Alves, são “pais concebidos por seus interesses individuais próprios, os de terem um filho com a assistência genética do outro genitor, nada mais havendo entre eles. É a família por parceria dos pais, tipicamente formada somente para coparentalidade”[3]. Filhos de encomenda por pais de encomenda, diz o autor, “malgrado algumas críticas bioéticas, constitui uma nova realidade que não pode ser desconsiderada pelo direito da família. Os fatos da vida conferem realidades diferentes, no sentido da comunidade familiar em seus mais diversos segmentos”[4].
Famílias conjugais e parentais não são excludentes, mas frequentemente simultâneas e sempre complementares. Jamais interdependentes reciprocamente. Uma pode acontecer sem a outra. A família conjugal surge sem qualquer intersecção com a família parental, que persistirá ainda que extinta a família conjugal, como se dá nas situações de divórcio e extinção da união estável, onde os ex-parceiros conjugais permanecerão pais dos filhos comuns, muito embora não tenha sobrevivido elo jurídico algum entre eles. A família parental permanece, por intermédio dos filhos, de modo que o divórcio ou a dissolução da união estável deixam de representar somente o fim do casal conjugal para proporcionarem o fortalecimento do casal parental , que continua a existir pelo envolvimento de ambos os pais na vida dos filhos, na máxima extensão possível para a concreção do seu desenvolvimento e realização de seu melhor interesse.
É exatamente isso o que ocorre na coparentalidade, com uma única e exclusiva diferença: é que nesta forma de família, nunca existiu um casal conjugal. Aqui, a parentalidade não é complementar à conjugalidade, mas constitui o único e exclusivo objeto desse agrupamento interpessoal.
No passado, falava-se em produção independente, quando mulheres resolviam unilateralmente pela maternidade e se valiam de bancos de sêmen. Era uma realidade em que a mulher assumia, sozinha, as funções paternas e maternas, muitas vezes dividindo tais funções com seus pais. A realidade da coparentalidade permite às pessoas a superação da necessidade de um vínculo (conjugal por casamento ou por união estável) para que sejam pais ou mães. Admite-se, por força da vontade de homens e mulheres, que não há e nem nunca existiu um casal conjugal (as pessoas nunca mantiveram relações sexuais, nunca se se comportaram como casal etc). A única relação entre eles é de parentalidade da mesma pessoa. O vínculo que os une é a relação de afeto com o filho e não entre si.
A questão que demanda uma maior verticalização, máxime à luz de rumoroso litígio envolvendo o inventário de um célebre apresentador de televisão, é que o ordenamento jurídico não outorga a toda e qualquer manifestação de família os mesmos direitos. Notadamente, no que tange às prerrogativas próprias do Direito de Família e das Sucessões, encontram-se contempladas, apenas, as formações familiares típicas, constituídas a partir da conjugalidade (união estável e casamento) e da parentalidade (abrangente das relações de filiação e de parentesco).
O direito a alimentos é titularizado por cônjuges, companheiros e parentes, enquanto a ordem da vocação hereditária, na sucessão legítima, só convoca a suceder os descendentes, os ascendentes, o cônjuge, o companheiro e os colaterais.
Aqueles que exercem a coparentalidade, no que se refere às relações jurídicas internas, não se subordinam à regência normativa do Direito de Família. Não são cônjuges e, especialmente à falta de conjugalidade, também não são companheiros. É por isso que não se fala em “casal” coparental. Não formam uma sociedade conjugal, por isso não submetem as suas relações patrimoniais às regras próprias dos regimes de bens. Muito menos serão parentes, eis que o nexo de parentesco existirá apenas da parte de cada um, isoladamente, em relação aos filhos.
Portanto, entre as pessoas que exercem a coparentalidade também não existem direitos sucessórios recíprocos.
Pode acontecer que duas pessoas que celebraram uma parceria coparental pareçam, aos olhos do grande público, da pessoa leiga, dos que não conhecem o direito de família, um casal conjugal, sob a forma de união estável. Entretanto, a aparência, que se identifica com o requisito da publicidade (reputatio), não pode se sobrepor aos demais requisitos exigidos pelo art. 1.723 do CCB, entre os quais a intenção de constituir a família conjugal (animus familiae), aferível pelo tratamento dos parceiros entre si (tractatus). Apesar de não exigir formalidade, nem solenidade, mas tão somente o fato da convivência pública, contínua, duradoura e com o objetivo de constituição de família, a união estável não prescinde da conjugalidade (no sentido de affectio maritalis) e da comunhão fática de vidas de ambos, como um verdadeiro par afetivo. Apenas a reputatio não se prestará para caracterizar uma união estável, enquanto as partes não concretizarem o efetivo convívio como se casados fossem.
Aliás, se bastasse a aparência de conjugalidade para caracterizar a união estável, todo o sistema jurídico necessitaria de revisão. Um homem e uma mulher que moram sob o mesmo teto, dividem despesas, nutrem carinho entre si, respeitam-se e cuidam-se reciprocamente automaticamente são considerados companheiros? É o caso de amigos que moram juntos, de primos que moram juntos, de pessoas que se gostam e se respeitam. Vamos mais longe. Se um homem solteiro mantém relação sexual com uma moça solteira e esta engravida. Como forma de acompanhar a gravidez e cuidar da criança que nascera, o homem propõe à mulher que ela more com ele, temos, só por esse fato, uma união estável? Claro que a resposta é negativa.
Há um dado relevante. As pessoas que exercem apenas coparentalidade tem suas vidas afetivas próprias e, por isso, no mais das vezes (como parece ser a situação do caso rumoroso que está sendo debatido no Poder Judiciário), tais pessoas se relacionam afetiva e sexualmente com terceiros e não entre si. O comportamento social do “pseudo-casal” é clássico: “somos pais e só pais. Não somos um casal, não somos companheiros, não somos cônjuge”.
Finalmente, cabe concluir que a tutela estatal compreensiva das entidades familiares típicas e atípicas não implica equiparação da respectiva moldura normativa, pois em sendo diversas as suas características, imperioso reconhecer a diversidade de regimes legais, sem que se incorra no equívoco da hierarquização. Não cabe falar em famílias mais ou menos importantes, mais ou menos reconhecidas, mas, simplesmente, famílias diferentes, cada qual a seu modo, e, por isso mesmo, mais ou menos reguladas.
Fonte: Consultor Jurídico