Desde 2018, o processo passou a integrar o rol de serviços de cartórios do Brasil
“É uma garantia de que não vou passar por situações constrangedoras e/ou perigosas. Imagina um homem apresentar o RG com o nome de uma mulher?”. O relato de Miguel Nogueira, de 24 anos, que estuda Design em uma universidade em Salvador, reflete o medo que a maioria das pessoas trans vive quando a identidade de gênero não condiz com as informações contidas em documentos.
Segundo ele, o tratamento da sociedade muda completamente após a retificação. “Quando eu vou buscar meus hormônios, a moça da farmácia não me vê como um cara trans, e sim como o cara com baixa testosterona e que precisa de reposição. E a gente vê a diferença que isso causa no jeito que falam, no olhar e tudo. O olhar das pessoas é sempre muito revelador”.
Em fevereiro deste ano, Miguel participou de um mutirão e conseguiu retificar seu nome e sexo em sua certidão de nascimento. Nas palavras dele, as situações mais constrangedoras que viveu foram justamente após a retificação, durante a mudança dos dados em outros locais devido a dificuldades, principalmente sistêmicas.
Ele lembra que quando alterou os dados no sistema de nome social do local onde estuda, teve apagado o e-mail institucional e precisou criar outro. “Resultado, perdi meu acesso a plataforma de estudos com apostilas e afins, avisei aos professores várias vezes e ainda assim um deles quase me reprovou”, lembra.
Houve constrangimento também em um laboratório, que trocou o nome dele, mas não o sexo; em uma rede de supermercado que alegava que seu nome estava incorreto em um cadastro, além de outras situações. O menos complicado para ele foi realizar a alteração na Receita Federal. “’Chocantemente’ o mais simples. Cheguei lá, mostrei os documentos e já saí com meu CPF alterado. Parece que todos esses sistemas são feitos de maneira muito burra, como se o nome não fosse alterável”.
Desde 2018, o processo passou a integrar o rol de serviços de cartórios do Brasil graças a uma jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF). Desde então, o maior número de alterações de gênero e sexo na Bahia foi registrado nos primeiros seis meses deste ano, quando houve 61 alterações, de acordo com dados da Associação Nacional dos Registradores de Pessoas Naturais da Bahia (Arpen).
O processo
Devido à falta de informações sobre o tema no momento inicial, em 2018 e 2019, atrelado a adequação pela qual passavam os cartórios, e seguido nos anos seguintes pela pandemia, a busca do público interessado pelo serviço foi gradativamente sendo intensificada.
Presidente da Arpen Bahia, Daniel Sampaio destaca ainda que, na Bahia, o Tribunal de Justiça do estado, em uma medida à frente de outras unidades federativas, conferiu o direito de gratuidade às pessoas hipossuficientes e autorizou a inclusão do gênero não binário às pessoas que não se identificam nem como homem nem como mulher.
“A pessoa procura o oficial de justiça civil, faz o requerimento, alega que se identifica com o gênero oposto ou outro nome que não aquele lhe conferido no registro, o oficial de justiça, caso não haja suspeita de fraude, defere, independente de motivo. Daí a pessoa sai do cartório com o nome e gênero alterado”, explica.
Todo o processo pode levar, em média, cerca de cinco dias úteis, mas contando do momento em que todos os documentos necessários (confira a lista aqui) são apresentados de forma correta. Ao fim do processo, a pessoa recebe uma nova certidão de nascimento com o nome novo, mas sem qualquer anotação sobre a alteração. O cartório, por sua vez, comunica a alteração às bases de órgãos públicos, como Receita Eleitoral, Justiças Eleitoral e Militar, Secretaria de Segurança Pública.
A pessoa leva também uma certidão de inteiro teor, constando a alteração de nome e gênero, caso seja necessário comprovar que houve a troca. “Digamos que a pessoa altera nome e gênero após a colação de grau em faculdade. Ela leva a certidão de inteiro teor e pede a expedição do diploma com nome e gênero alterados”, explica Daniel.
Há alguns dias, a Oficial de Registro Andreza Guimarães, que trabalha em um cartório na cidade de Castro Alves, no Recôncavo baiano, viu de perto a emoção de uma pessoa trans que conseguiu retificar sua certidão de nascimento. Ela contou que a pessoa se emocionou bastante, tirou várias fotos, fez postagem nas redes sociais e agradeceu a ajuda.
“Ela nos disse que agora poderia ter a dignidade de ser reconhecida como de fato sempre se achou. Para nós, foi muito bacana poder realizar este sonho”, contou Andreza, que considera histórico o momento de quebra nos tabus e preconceitos que o país vive.
“Eu só posso me sentir lisonjeada por estar cumprindo minha função social enquanto registradora civil, contribuindo para que as pessoas sejam inclusas na sociedade e possam exercer seus direitos, tendo a sua cidadania concretizada”, completou.
É preciso cirurgia?
O procedimento de troca de nome e gênero é feito com base na autonomia da pessoa e não é necessária a realização de cirurgia de redesignação sexual. O médico Felipe Góis, cirurgião plástico membro da Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica (SBCP), realizou a primeira cirurgia plástica em transexual na cidade de Salvador em 2020.
Ele frisa que homens e mulheres trans não precisam, obrigatoriamente, passar por procedimento cirúrgico, pois cada pessoa se aceita de uma forma. “O homem trans, de repente, pode estar satisfeito em ter cabelo mais curto, usar roupas masculinas, e por aí vai, não é uma fórmula de bolo”.
Felipe explica que são diversos os procedimentos cirúrgicos que auxiliam as pessoas trans a adequarem o corpo ao gênero pelo qual se identificam. “Pela nossa estatística, a demanda de paciente que deseja cirurgia de transgenitalização da genitália não chega a 19% nos grandes centros. Então, é um conjunto de adequação física para com o gênero. Pode ser uma cirurgia na mama, no pomo de Adão, que a gente reduz na mulher trans, frontoplastia, que é a de feminização da face, então este conjunto de procedimento a gente chama de redesignação de gênero”.
A maior demanda, segundo o cirurgião, é da cirurgia mamária, seja para a mulher trans que tem a mama pequena, seja para o homem trans, que tem a mama grande. “O paciente vem para uma cirurgia de melhora. Mas, às vezes, o paciente não tem uma concepção bem estabelecida da cirurgia, que tem complicações e limitações. Cabe a gente colocar no chão”.
Projeto terapêutico singular
Antes de chegar ao cirurgião, no entanto, o paciente é atendido por um conjunto de profissionais, que compõem o Projeto Terapêutico Singular (PTS), que fornecem atenção médica especializada às pessoas transgêneros. Antes da possibilidade de trocar o nome em cartórios, a retificação só era realizada por meio de ação judicial. Durante a tramitação, era requerido um laudo psiquiátrico, entre outros documentos, para atestar que a pessoa trans, de fato, é trans.
A psiquiatra Danielle Admoni, preceptora na residência da Escola Paulista de Medicina UNIFESP e especialista pela Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), destaca que pessoas que não retificam o registro civil conforme se identificam, e têm tal desejo, demonstram grande incômodo, principalmente devido as situações sociais.
“A gente vê várias confusões, em fila, por exemplo, todo mundo olha estranho, então quando isso é um incômodo, a gente vê que traz muitas complicações, por isso é importante que a pessoa que quer, vá lá e faça a mudança de nome de registro para o social”, disse.
Danielle conta que o papel da psiquiatria no acompanhamento de pessoas que não se identificam com o nome e gênero registrados no nascimento é ajudar a pensar o que o indivíduo quer.
“Gênero é uma questão autodesignada, não é o psiquiatra que vai decidir se aquela pessoa é homem, mulher, bisexual, asexuada, é a própria pessoa. Se ao longo do caminho surgirem algumas questões psiquiatricas, como qualquer pessoa, ajudar a tratar isso. Se ela vai querer usar roupas diferentes, passar pela cirurgia, tudo isso quem vai decidir é a própria pessoa”, complementou.
Ela frisa que, diferente do que acontecia também com homossexuais há cerca de 30 anos, a questão da incongruência de gênero não é mais considerada, de maneira alguma, uma patologia psiquiátrica.
“Hoje a gente sabe que não, não tratamos como doença. Pessoas que não se identificam com o gênero designado ao nascer, não tratamos como patologia, a não ser que haja algo associado. Pode ser que tenha a incongruência e a disforia, um incômodo, uma irritabilidade quanto à isso, aí sim, precisa tratar, mas nem todo mundo que tem incongruência de gênero tem a disforia”, afirmou Admoni.
Segundo Danielle, há disforia de gênero percebida em pacientes desde a fase da adolescência e existe, inclusive, relatos de incongruência de gênero na infância acompanhado de disforia. “Nosso papel como profissional da saúde mental é acompanhar essas pessoas e ver para onde vai encaminhar isso, e não induzi-la a fazer qualquer tipo de coisa”.
“Na infância e na adolescência a gente vê muito essa questão de gênero fluido, a pessoa nasce com um gênero, depois se identifica com outro, depois volta, vimos alguns casos famosos, inclusive. Então, na infância e adolescência, a gente trata como gênero fluído, não fechamos muito isso nessas fases”, pontuou a psiquiatra.
Ela conta que o preconceito de outras pessoas com questão de gênero de outras pessoas é, resumidamente, apenas preconceito. Danielle frisa que questões similares incomodam pessoas não habituadas com o assunto e deixa um recado. “É mais um preconceito que uma questão real que possa pegar nas pessoas. Cada um cuida da sua vida e ninguém tem nada com a vida do outro”.
Ambulatório transexualizador
No Hospital Universitário Professor Edgar Santos (Hupes), o ambulatório transexualizador foi habilitado pelo Ministério da Saúde em 2018. No local, são oferecidos serviços de enfermagem, psicologia, endocrinologia pediátrica, além de outros serviços que o hospital universitário oferece. A farmácia oferece boa parte do que uma pessoa trans precisa para hormonização.
“O que é oferecido de terapia hormonal é a testosterona para os homens trans e para as mulheres trans, por enquanto, só conseguimos oferecer os bloqueadores androgênicos. Os hormônios femininos ou feminilizante a gente ainda não conseguiu comprar, está no projeto, já houve três tentativas”, conta a médica endocrinologista Luciana Barros Oliveira, que coordena o ambulatório.
Ela ressalta a importância da troca de nome e gênero no registro civil para as pessoas trans. “Na nossa cultura, nome tem um marco binário, então tem nome de mulher e nome de homem. A questão da identidade de gênero, quando a pessoa não se identifica, o nome a relembra a cada momento o nome que foi designado no nascimento e não é o que ela se identifica. Então é extremamente importante. Diminui muito disforia de gênero, ansiedade, e a pessoa se sente mais acolhida, respeitada, que é um direito de todo cidadão”.
Luciana conta que o benefício do ambulatório à comunidade acadêmica da UFBA é imenso e atinge, inclusive, toda a sociedade. “Dentro da Universidade somos o único centro de referência, então comigo passam todos os residentes de endocrinologia. Acredito que em algum tempo não vai haver mais questão de não encontrar endocrinologista que saiba cuidar de pessoas trans”.
“Fico feliz de ver que já tenho quatro gerações que se formaram na residência e hoje estão em seus consultórios cuidando de pessoas trans e acolhendo essas demandas, que é extremamente importante, já que o endocrinologista é o profissional especializado na condução da hormonioterapia”, acrescenta.
Apesar dos avanços, ela cita que, em Salvador, ainda falta acolhimento nas unidades básicas de saúde. “Todo distrito sanitário tem uma unidade com profissional que acolhe pessoas LGBTs e que vai intermediar para evitar a transfobia, mas acredito que tem que ampliar”.
Outro ponto a ser alterado é o fornecimento da medicação pelo SUS. Ela explica que hormônios sexuais, que não sejam anticoncepcionais, não estão na lista do SUS. “Isso é uma política que precisa mudar. A questão de uma menina ou menino que nasceu com testículo ou ovário que não funcione, não possuem como fazer hormonização gratuita, pois o SUS não fornece. Se a saúde é pública e tem que ser fornecida pelo estado, é um contrassenso a gente não ter essas medicações para oferecer a essa população”.
O ambulatório ainda não realiza cirurgias do processo transexualizador. Segundo Luciana, de 2013 a 2022 somente um hospital foi habilitado. “Não acredito que somente nós tenhamos solicitado. Outros pediram e o Ministério da Saúde precisa rever reveja os critérios que está usando para habilitar os centros. Os cinco que existem hoje não dão conta do volume de cirurgias necessárias para a população trans”.