A Lei 13.484/2017 converteu o Registro Civil das Pessoas Naturais em “Ofícios de Cidadania”, ao reconhecer que essa delegação extrajudicial pode exercer novas atribuições e incrementar o nível democrático do Estado de Direito.
Ninguém desconhece que, entre os antigos “cartórios”, o RCPN é aquele de cujos préstimos todos, sem exceção, necessitam. É nele que se lavram os assentos de nascimento, de casamento e de óbito. Fatos inevitáveis desta efêmera passagem dos humanos pelo Planeta Terra.
A formatação dos serviços extrajudiciais foi uma inteligente estratégia do constituinte de 1988. Por ela, o Estado delega uma atividade estatal a profissionais que a exercerão em caráter privado, após aprovação em severo concurso público de provas e títulos, realizado pelo Poder Judiciário.
Como sói acontecer, o Estado brasileiro é useiro e vezeiro em fazer cortesia com chapéu alheio. Incumbe o Registrador Civil de atuar e obriga o delegatário a trabalhar sem salário. Pois torna gratuita a maior parcela da atuação registral civil das pessoas naturais.
A criatividade tupiniquim criou os Fundos, que constituem uma forma de ressarcimento das serventias deficitárias com recursos de uma contribuição das serventias rentáveis. Essa destinação viabiliza a continuidade de um serviço público essencial. São cerca de 13 mil unidades de RCPN no Brasil. Elas estão presentes em distritos, lugarejos, povoados e locais os mais recônditos da nacionalidade. Não há polícia, não há outra presença do Estado nesses núcleos de convivência às vezes longínquos. Mas ali está o Registrador Civil, a atender todas as necessidades da população. Nem sempre os problemas guardam pertinência com a área jurídica. São questões sociais, de saúde, de falta de quase tudo. Esses profissionais deveriam perceber remuneração condigna. E não é o que acontece.
Em boa hora, a Lei 13.484/2017 permitiu que o RCPN pudesse prestar outros serviços, mediante convênios com as entidades que, originariamente, deveriam prestá-los. Essa permissão foi questionada perante o STF e a ADI 5.855, relatada pelo Ministro Alexandre de Moraes, apenas julgou parcialmente inconstitucional a menção à desnecessidade de homologação dos convênios. No mais, foi expresso o Ministro ao dizer que a ampliação de atribuições não constituía um “jabuti” ou significava “contrabando legislativo”. Ao contrário: é o reconhecimento de que um setor que funciona com eficiência e que merece a confiança da população, possa vir a se desincumbir de outras tarefas.
O CNJ, com o Provimento 66/2018, legitimou a normatividade e ela já produz efeitos em inúmeros Estados-membros. As serventias do Registro Civil podem servir para atender à população, notadamente a mais carente e distanciada de agências estatais como os Departamentos de Trânsito, Delegacias da Receita Federal, INSS, Delegacias de Polícia Federal e outras. Tudo recomenda que no Registro Civil se obtenha inscrição de CPF, se obtenha segunda via de CNH, RG, Passaporte, biometria e cadastramento para inserção em listas de candidatos ao SFH e qualquer outro direito ou benefício previsto no ordenamento.
Mas é preciso ir além. O Brasil é um país pobre em dados confiáveis. As estatísticas nem sempre são atualizadas. A instância preordenada a realizar esse trabalho de preservação atualizada de um acervo fidedigno de informações essenciais ao planejamento e à adoção de políticas públicas consequentes, é o Registro Civil das Pessoas Naturais.
O Registro é um repositório dos mais sensíveis dados necessários à consolidação democrática desta República. Ele poderia auxiliar as Prefeituras em relação ao cálculo das necessidades de creches, de postos de saúde, de vagas para o ensino fundamental. Poderia controlar a previsão de vacinas, pois é fácil verificar o número de crianças e as faixas etárias em que a imunização se faria.
Tudo aquilo que o IBGE faz por amostragem, o RCPN faria com fidelidade e exatidão maiores. Sem prejuízo de todas as outras possibilidades de substituir, com vantagens, a burocracia de repartições em número mais reduzido e em regra distanciadas dos pequenos núcleos populacionais.
A pulverização do Registro Civil foi o que inspirou o legislador a alargar suas atribuições. Agora é preciso investir em criatividade, engenhosidade e um pouco de ousadia, para que o permissivo legal se concretize, em nítido favorecimento da simplificação da vida cidadã.
O Brasil das “leis que pegam” e “leis que não pegam” tem de se empenhar para que as boas práticas se concretizem e não se reduzam às excelentes ideias, que não passam de miragens ou de ficção.
*José Renato Nalini é reitor da Uniregistral, docente da pós-graduação da Uninove e presidente da Academia Paulista de Letras – 2019-2020
Fonte: Estadão