Dados da Fiocruz sugerem que o número oficial de vítimas fatais do novo coronavírus está abaixo do real. Medir o impacto da Covid-19 no Brasil ainda é um desafio
Os últimos dados do sistema de monitoramento InfoGripe, mantido pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), são eloquentes: o número de mortes por doenças respiratórias desde o início de março soma 5.142, ante uma média de 597 para o mesmo período nos últimos cinco anos. Entre 2015 e 2019, o total de mortos somou 2.987, ou 58% do que já foi registrado neste ano só em março e abril.
Os números da Fiocruz ainda são estimados, sujeitos a alteração. Consideram as mortes por aquilo que os médicos chamam de Síndrome Respiratória Aguda Grave (ou SRAG), uma condição cujos sintomas são semelhantes aos da Covid-19, mas que também engloba gripes e doenças respiratórias causadas por outros tipos de vírus.
Apesar disso, eles sugerem que a contabilidade das mortes realizada pelo Ministério da Saúde, que ontem chegou a 2.741, está subestimada. Não se trata apenas da dificuldade em avaliar o total de casos, em virtude da falta de testes ou da profusão de pacientes assintomáticos. Há subnotificação provável no próprio número de mortes, em tese a estatística mais objetiva, mais fácil de apurar e menos sujeita a controvérsia.
Outro sinal relevante vem dos dados recolhidos nos cartórios de registro civil. De acordo com as últimas informações disponíveis, houve do início do ano até ontem 3.108 mortes com suspeita ou confirmação de Covid-19, quase 400 acima da contabilidade oficial.
Numa conta aproximada, subtraindo apenas a média anual dos dados estimados pelo InfoGripe, ainda faltariam mais de 1.800 mortes sem explicação desde março, quando a Covid-19 matou o primeiro brasileiro. “Nem todas as mortes adicionais podem ser atribuídas ao novo coronavírus”, afirma Gonzalo Vecina, da Faculdade de Saúde Pública da USP. “Mas com certeza boa parte delas foi causada por ele.” A dúvida, na falta de testes em todas as vítimas do vírus, é saber quantas.
Quem acompanha a evolução dos casos diários divulgados oficialmente começa a ficar com a impressão de que a epidemia apresenta no Brasil um comportamento mais suave do que noutros países. O crescimento diário médio no número de casos oficiais caiu de pouco mais de 15%, entre o início de abril e o último dia 17, para 6,4% desde então.
Numa visão otimista, é possível imaginar que as medidas de isolamento que foram adotadas Brasil afora começaram a surtir efeito e contribuíram para achatar a curva de contágio. Ou então que características específicas da população brasileira estejam arrefecendo o impacto da epidemia no país. Não é uma hipótese a descartar cientificamente (escreverei sobre o assunto esta semana).
O noticiário, contudo, também traz razão para o pessimismo. As mortes por síndromes respiratórias registradas pelo InfoGripe superam mais de oito vezes a média dos anos anteriores. Só o Rio de Janeiro registrou mais internações nas últimas quatro semanas do que ao longo de todo o ano passado.
Os leitos de UTI já acabaram na rede pública da cidade do Rio de Janeiro, de Belém e nos estados de Ceará, Pernambuco e Amazonas. Com quase 200 mortos pela Covid-19 no estado, a prefeitura de Manaus teve de começar a fazer enterros em valas comuns.
O último boletim do InfoGripe constata que, até a semana passada, pelo menos 70% dos casos confirmados de vírus respiratórios haviam testado positivo para Covid-19. Os principais indicadores acompanhados pelo sistema indicam atividade semanal “muito alta” e põem quase todo o país muito acima na zona de risco.
No fundo, pouco importa se alguém morre de Covid-19 oficialmente, se seu caso é registrado apenas como pneumonia ou se bate o carro, sofre traumatismo craniano e não encontra vaga na UTI. Como a pandemia exerce impacto em todo o sistema de saúde, a estatística mais relevante para avaliar seu impacto deveria comparar as mortes por todas as causas à média dos anos anteriores.
Tal cálculo foi feito no final de março pelo italiano Luca Dellanna para a cidade de Bergamo e para a França. Em seguida, a revista britânica The Economist registrou os cálculos e passou a acompanhar a alta nas mortes em várias regiões do mundo. Ontem o New York Times usou o mesmo princípio para estimar, no caso de 11 países, em pelo menos 25 mil mortes a diferença da contabilidade oficial para o custo real da pandemia. Levando em conta apenas os dados do InfoGripe, é difícil acreditar que, no Brasil, a situação seja muito diferente.
Fonte: G1