Um simples vírus, que mais parecia a repetição de fatos que a história dá conta de narrar, mudou a realidade de países, causando uma reviravolta, sem precedentes, na ordem mundial, à medida que desestabilizou o ordenamento jurídico então existente em todos os cantos do globo terrestre. Iniciada na China, sem a confissão concreta do que fatalmente se passava, atravessou o mundo e se agarrou ao Ocidente, de onde emergem as origens de nossa formação jurídica.
Ultrapassando as fronteiras orientais, a então pandemia do novo coronavírus (Covid19) agregou-se aos mais diversos países, promovendo uma verdadeira desordem quanto à forma de solução dos problemas e demais conflitos de interesses que se apresentam.
Em 30 de janeiro de 2020, a OMS a reconheceu como emergência de saúde pública de importância internacional — ESPII e, imediatamente, os vários países vêm adotando internamente medidas de enfrentamento ao Coronavírus.
No Brasil, em 6 de fevereiro, surge a Lei 13.979, já alterada pela Medida Provisória 926, de 20 de março.
Todavia, o Direito, sobretudo o Direito Administrativo, parece não estar dando conta de oferecer soluções previsíveis.
Restrições estabelecidas, conceitos remodelados dia-a-dia, imposições das mais diversas ordens vêm promovendo uma crise, senão uma guinada acentuada, no agir da Administração Pública.
Não é novidade que vários autores já noticiaram, bem antes, uma tal reformulação nos marcos deste ramo do Direito, que cuida, essencialmente, da regulação das atividades administrativas.
Ressurge, com grande intensidade, o debate sobre o princípio do interesse público (prefere-se falar em “interesses públicos”) e sua eventual supremacia sobre os interesses particulares. Ora, respeitando-se muito a quem se imbui neste debate, seja para defender a tal supremacia, seja para rechaçá-la, parece ser muito inoportuno discutir o “nome da coisa”, quando todos já convergiram acerca da “coisa”.
Pressupõe-se, pois, que: a) o interesse público há de ser a finalidade almejada em toda e qualquer conduta administrativa (“que se estrutura ao influxo de uma finalidade cogente”, diria Ruy Cirne Lima); b) há prerrogativas estatais embasadas em regras constitucionais e legais de competência; c) tais prerrogativas hão do observar os direitos e garantias fundamentais dos cidadãos; d) nenhum governante pode ser valer de qualquer concepção pessoal e subjetiva sobre o que cogita ser o interesse público, para se autocoroar, tal qual Napoleão em 1804, como o titular de tal noção que, em geral, há de ser mediatizada pelo legislador, através de regras de competência (vide o ululante item “b”, supra).
Todavia, neste novo contexto e considerado o fato de que o Direito Administrativo há de servir, mesmo em tempo de crise, como fiel da balança que equilibra prerrogativas estatais e o direitos fundamentais dos destinatários da função administrativa, o colapso salta aos olhos, diante da existência, pragmática mesmo, de uma disfunção de institutos e de ideias até então razoavelmente rígidos, como, por exemplo, a já referida noção de interesse público, do direito de propriedade, das invioláveis garantias fundamentais de cada ser humano, dentre outros.
Não se mostra equivocado, inclusive, falar-se numa legalidade extraordinária, decorrente de um estado de necessidade administrativo, mas mesmo tal excepcionalidade há de observar os limites constitucionais, sobretudo no tocante aos direitos fundamentais em jogo.
Eis, portanto, o propósito do presente ensaio: conjecturar o protagonismo de um “DIREITO ADMINISTRATIVO DA CRISE”, com opiniões tendentes a solucionar o colapso do vigente Direito Administrativo, demonstrando, sem pretensão de qualquer imposição conceitual, as mais variadas vertentes voltadas à solução de problemas em concreto.
Destaca-se, inicialmente, que a emergência comina, sem larga margem temporal de escolha, a tomada de decisões céleres, às vezes abrupta, mas que, pelo cataclismo social criado, necessitam ultrapassar até mesmo a mais ínfima obediência legal que, até então, o ordenamento jurídico ousou criar. A sociedade exige a solução sem se preocupar com a forma; importa o produto, inobstante o meio.
Licitação regular, com a burocrática e tardia escolha objetiva de interessados, pode não ser a solução para o atingimento do melhor interesse público. Contratar “a toque de caixa” se consubstancia na única e irremediável saída. Estabelecer restrições a direitos individuais, sobretudo de ir e vir, embora com previsão constitucional, esbarra na triste lembrança de períodos ditatoriais.
Daí porque merecem encômios as regras trazidas pela MP 926/2020 acerca de contratações e, especialmente, dos procedimentos emergenciais de cunho licitatório.
Tudo se torna cada vez mais emaranhado e, ao passo que a turbulência social clama por soluções em concreto, o Direito formalmente “talhado”, muito útil num ambiente de normalidade, já não mais resolve, ao menos na configuração que, legalmente, se pensara e propusera, na ideal e normalíssima formação da ordem jurídica administrativa, estabelecida em outro contexto completamente diverso.
É que ninguém é capaz de pensar na constituição de institutos jurídico-administrativos produzidos para momentos de anormalidades agudas, sobretudo quando tais colapsos perpassam o que a humanidade jamais pensou ser possível ocorrer. É, estes institutos até existem (requisição administrativa, por exemplo), mas não servem à resolução de todos os problemas que de uma pandemia podem advir.
O coronavírus se instalou sem deixar recado; não avisou o legislador e nem deu preparo ao administrador público. Atribuiu, ao Judiciário — e aos órgãos de controle —, senão uma suavização quanto à rigidez interpretativa, uma nova participação, não no sentido de sobrepor a vontade do tomador de decisão, mas de figurar como comparte, na busca da melhor solução em concreto.
Aliás, o DIREITO ADMINISTRATIVO DA CRISE deixa um recado aos órgãos de controle, interno ou externo: num momento em que se faz necessária a gestão geral e racional de uma crise, em muito pouco ou em nada ajuda medidas de controle sobre a Administração Pública, como a já existentes liminares que determinam, por exemplo, a criação de vagas de UTI, amplamente equipadas, em 24 horas. O DIREITO ADMINISTRATIVO DA CRISE não permite egoísmo ou individualismos. E controles como tais são egoístas e individualistas, por melhores que sejam os propósitos dos controladores.
Como destacado pelo Ministro da Saúde, Luiz Henquire Mandetta, em uma de suas entrevistas coletivas, já não há mais espaço para “engenheiro de obra-pronta”. É preciso protagonismo, liberdade de ação, tudo em atendimento ao interesse público, que se forma, agora, topicamente, com mudanças diárias, embora ainda remanesça, por certo, o pano de fundo que lhe serve de fundamento e suporte: a busca da proteção da coletividade.
Desta crise do Direito Administrativo, nitidamente evidenciada e comprovada à luz de uma pandemia, emerge um “DIREITO ADMINISTRATIVO DA CRISE”, com olhares voltados a soluções mais sensatas e acertadas, que destramem os robustos problemas, os quais, sem prévia acusação e sem conceder esclarecimentos, despontam para a Administração Pública. Basta de “engenheiro de obra-pronta”!
Fonte: Consultor Jurídico