Seguimos neste canal com o estudo da Reforma do Código Civil, tendo em vista o trabalho desenvolvido pela Comissão de Juristas nomeada pelo Senado Federal. Quando da elaboração e da publicação deste artigo, ao final do mês de março de 2024, já haviam sido apresentados os textos dos Relatores-Gerais, seguidos por destaques e emendas, para votação final no início do mês de abril próximo, com a participação de todos os membros da comissão.
Encerrada esta fase dos trabalhos, com a revisão e consolidação do texto, será enviada a versão do anteprojeto ao Presidente do Congresso Nacional, Senador Rodrigo Pacheco, para que ele avalie a pertinência da apresentação das propostas como projeto de lei.
Feito esse esclarecimento inicial, um dos temas que merecem uma especial atenção diz respeito à facilitação da celebração do casamento, tendo em vista sobretudo a utilização de novas tecnologias. Como é notório, a Lei do SERP (lei 14.382/2022) instituiu o Sistema Eletrônico de Registros Públicos, tendo a Corregedoria-Geral de Justiça do Conselho Nacional de Justiça instalado o site do serviço unificado, com todas as competências das serventias extrajudiciais, no último dia 22 de março de 2024. Como tenho sustentado, essa nova ferramenta consolidará uma verdadeira revolução para as atividades notariais e registrais, facilitando o acesso da população aos institutos do Direito Civil e, quiçá, diminuindo ainda mais as burocracias e os custos.
Nesse contexto, a Subcomissão de Direito de Família da Reforma do Código Civil – formada pelo Ministro Marco Buzzi, pela Desembargadora Maria Berenice Dias, pelo Juiz de Direito Pablo Stolze e pelo Professor Rolf Madaleno – já havia proposto o fim dos proclamas para o casamento e outras medidas para a facilitação do processo de habilitação e de sua celebração.
Todavia, a Relatoria-Geral – formada por mim e pela Professora Rosa Maria de Andrade Nery – preferiu seguir um caminho ainda mais audacioso, tendo em vista a facilidade de obtenção das informações e os recursos tecnológicos, qual seja, o fim do processo de habilitação, com todas as suas formalidades e perda de tempo – sendo substituído pelo que denominamos como procedimento pré-nupcial.
Como primeira regra a respeito do tema, o novo art. 1.511-E do Código Civil passa a dispor que o seu trâmite legal é gratuito, uma vez que não haverá maiores despesas para o próprio Cartório de Registro Civil, cujo trabalho se resumirá a consultas ao sistema de informações registrais, na grande maioria das vezes de forma digital ou eletrônica.
A celebração do casamento será precedida desse procedimento pré-nupcial, requerido pelos nubentes, que se identificarão, por meio físico ou virtual, ao oficial do Cartório de Registro Civil (nova redação do art. 1.525 da codificação privada). O oficial então fará as buscas no sistema eletrônico de dados pessoais, acerca da idade núbil, do estado civil dos nubentes e de sua capacidade de exercício, em especial para verificar se há algum impedimento ou incapacidade para o casamento (art. 1.526).
Vale lembrar que já há um procedimento similar no caso da certificação eletrônica da união estável, previsto no novo art. 70-A da Lei de Registros Públicos (lei 6.015/1973), incluído pela Lei do SERP (lei 14.382/2022). A sua regulamentação consta do Provimento n. 141 do Conselho Nacional de Justiça, sucessivamente incorporado ao seu Código Nacional de Normas (CNN-CNJ). Nos termos do seu art. 553, esse procedimento de certificação eletrônica de união estável realizado perante oficial de registro civil autoriza a indicação das datas de início e, se for o caso, de fim da união estável no registro, tendo natureza facultativa. Os parágrafos da norma complementam as suas regras procedimentais.
Também a respeito da união estável, a própria Lei do SERP possibilita o seu registro facultativo no Livro E do Cartório de Registro Civil das Pessoas Naturais (novo art. 94-A da Lei de Registros Públicos), consagrando o citado Código Nacional de Normas os procedimentos para tanto (arts. 537 a 546). Entre eles, merece destaque a previsão no sentido de ser vedada a lavratura de termo declaratório de união estável havendo um anterior lavrado com os mesmos companheiros, devendo o oficial consultar a Central de Informações de Registro Civil das Pessoas Naturais (CRC) previamente à lavratura e consignar o resultado no termo (art. 538, § 5º, do Código Nacional de Normas do CNJ). Essa Central é que deverá ser consultada também no caso do procedimento pré-nupcial que pretendemos incluir no Código Civil de 2002.
Ademais, por sugestão da Professora Rosa Nery, foi acrescentada ao art. 1.527 do Código Civil a consulta ao Sistema Nacional de Produção de Embriões, uma vez que a Reforma pretende tratar na codificação privada a respeito das técnicas de reprodução assistida. Nesse contexto, de posse dos dados exigidos para o procedimento, o oficial registrador fará a verificação junto a esse sistema sobre a existência de possível impedimento para o casamento. A norma visa a evitar, a título de ilustração, o casamento de irmãos, nos termos da vedação constante do art. 1.521, inc. IV, da Norma Geral Privada.
Com vistas a manter uma facilitação já consolidada a respeito da celebração do casamento, a nova redação do art. 1.528 prevê que qualquer dos nubentes, ou ambos, podem ser representados por procurador, tanto para o procedimento pré-nupcial como para a celebração do casamento; devendo a procuração ser outorgada por instrumento público e com poderes especiais. Nessas situações, se um dos nubentes, ou os dois, fizerem-se representar por procuradores, estes darão o assentimento e assinarão o termo de casamento (art. 1.535).
Nos casos das pessoas cuja autonomia estiver prejudicada por redução de discernimento – que não constitua deficiência e enquanto perdurar esse estado -, o novo art. 1.529 expressa que, quando o habilitando desejar ser auxiliado para o ato, o requerimento para o procedimento pré-nupcial deverá também ser firmado por dois apoiadores que tenham contribuído para a sua tomada de decisão. Uma das ideias da Reforma do Código, por previsão de outros dispositivos, é que a tomada de decisão apoiada – judicial ou extrajudicial – seja utilizada também para atos existenciais, além dos atos e negócios puramente patrimoniais, como se dá na atualidade.
Outra regra protetiva importante consta do novo art. 1.530 do Código Civil, segundo a qual o requerimento pré-nupcial deverá ser firmado pelos representantes legais do nubente que seja maior de dezesseis e menor de dezoito anos.
Após a verificação de todos esses dados e informações – o que pode ser efetivado muito rapidamente, em minutos, com simples consultas aos sistemas, sobretudo com o novo site integrado do SERP -, o oficial do Cartório de Registro Civil das Pessoas Naturais certificará estarem os nubentes aptos para a celebração do casamento (novo art. 1.531 do Código Civil). Essa certificação terá prazo de eficácia de trinta dias, e, se o casamento não for celebrado nesse prazo, o procedimento terá que ser reiniciado. Como se pode perceber, há uma grande simplificação, sem a presença dos proclamas ou de editais com longos prazos, o que não mais se justifica.
Eventualmente, se for o caso, os impedimentos para o casamento, previstos no art. 1.521, passarão a ser opostos por meio físico ou virtual, em declaração escrita, assinada e instruída com as provas do fato alegado ou com a indicação do lugar onde possam ser obtidas. De todo modo, podem os nubentes fazer prova contrária dos fatos alegados relativos aos impedimentos e, verificada a inveracidade das alegações, promover as ações civis e criminais contra o oponente de má-fé. Tudo isso constará do novo art. 1.532 do Código Civil, mais uma vez com vistas a facilitar os procedimentos, inclusive com a utilização das novas tecnologias, um dos motes da Reforma do Código Civil.
O casamento será celebrado no dia, hora e lugar previamente designados, pela autoridade que houver de presidir o ato (art. 1.533). Não há mais a menção à presença de duas testemunhas nem a que seja realizado na sede do Cartório, o que é totalmente dispensável. Nesses aspectos, seguimos as propostas e as justificativas da Subcomissão de Direito de Família, no sentido de que “dispensamos a exigência de testemunhas, que, nos tempos atuais, não significam nenhum ganho de segurança adicional e acabam sendo um obstáculo desnecessário, ainda mais se levarmos em conta que a união estável não exige qualquer testemunha para sua formalização”. E mais, “como, porém, a diretriz dos trabalhos desta Comissão é prestigiar a autonomia privada dos inúmeros brasileiros, facultamos a quem interessar realizar um ato de celebração do casamento mais ritualístico, de acordo com suas preferências pessoais, inclusive religiosas. Deixamos livre para as partes escolherem o modo da celebração”.
Seguindo, novamente com vistas a facilitar os procedimentos, até porque muitos Estados não regularizaram a Justiça de Paz, admite-se que o oficial de registro civil das pessoas naturais, ou seu preposto, seja investido das funções de juiz de paz, tomando a declaração mútua de vontade dos nubentes de contrair casamento, no ato da celebração, e colhendo-lhes a assinatura no termo de celebração (art. 1.533, parágrafo único, do Código Civil).
Mais uma vez para a redução de formalidades, não há qualquer previsão de palavras a serem ditas pela autoridade celebrante, como está no atual e arcaico art. 1.535 da Lei Geral Privada: “De acordo com a vontade que ambos acabais de afirmar perante mim, de vos receberdes por marido e mulher, eu, em nome da lei, vos declaro casados”. A questão ficou em aberto, sendo de livre escolha dos nubentes e da própria autoidade. Mais uma vez como bem justificou a Subcomissão de Direito de Família, a quem seguimos novamente, “limitamos a exigir que haja um ato de celebração com a declaração de vontade dos nubentes, com a assinatura delas e da autoridade celebrante, constando as informações necessárias ao registro de casamento. Com isso, desburocratizamos a vida dos cidadãos, sem afastar o direito daqueles que preferem modos rituais mais pessoais de celebração de casamento”.
Do casamento, logo depois de celebrado, lavrar-se-á o assento no livro de registro. Nesse assento, consoante a redação aperfeiçoada e simplificada do art. 1.536, assinado pelo presidente do ato e pelos cônjuges, serão exarados:
a) os prenomes, sobrenomes, datas de nascimento, profissão, domicílio e residência atual dos cônjuges;
b) os prenomes, sobrenomes, datas de nascimento ou de morte, domicílio e residência atual dos pais;
c) o prenome e sobrenome do cônjuge precedente e a data da dissolução do casamento anterior;
d) o resultado das informações obtidas das pesquisas levadas a efeito pelo Cartório;
e) o regime do casamento, com a declaração da data e do Cartório em cujas notas foi lavrada a escritura antenupcial, quando o regime não for o da comunhão parcial ou o obrigatoriamente estabelecido por lei.
Por fim, há uma divergência entre os Relatores-Gerais sobre a permanência ou não da atual regra do art. 1.538 do Código Civil, que traz previsões relativas ao rigor formal da solenidade do casamento.
A Professora Rosa Nery entende que tal previsão deve ser mantida e desmembrada em dois dispositivos. Assim, pelo novo art. 1.537, “a celebração do casamento será imediatamente suspensa se algum dos contraentes recusar a solene afirmação da sua vontade, declarar que está sob o impacto de forte emoção ou de coação, ou manifestar-se arrependido”. Ademais, o art. 1.538 do Código Civil passaria a prever que “o nubente que, por algum dos fatos mencionados no artigo anterior der causa à suspensão do ato, não será admitido a retratar-se no mesmo dia”.
Com o devido respeito, sigo o entendimento da Subcomissão de Direito de Família no sentido de que essas previsões sejam retiradas da lei, não se justificando mais nos dias atuais e representando um rigor formal excessivo diante da realidade da grande maioria dos brasileiros.
De todo modo, a questão já está destacada e será votada por todos os membros da Comissão de Juristas, quando do nosso esforço concentrado de trabalho, na primeira semana de abril. Seja como for, vencendo uma ou outra solução, não restam dúvidas de que a Reforma do Código Civil adotará um caminho bem mais simples e desburocratizado para a celebração do casamento, o que vem em boa hora, dentro de uma das linhas mestras do nosso trabalho de revisão da Norma Geral Privada.
Fonte: Migalhas