Falta de registro paterno no Brasil tem crescido e se concentra em manchas geográficas onde machismo e falta de acesso a serviços imperam
Só aos sete meses de gestação, Lídia* conseguiu acariciar a própria barriga e iniciar o pré-natal, exames que verificam se vai tudo bem com o feto e a grávida. A estudante tinha 16 anos e lidava sozinha com o fato de que em breve seria a única responsável por um bebê de 48 centímetros e uma vida pela frente.
A criança nasceu em São Domingos, no norte baiano, onde o índice de pessoas registradas sem o nome do pai (18%) desde 2016 é quase três vezes maior que o registrado no Brasil (7%), segundo a Associação de Registradores de Pessoas Naturais (Arpen). Em Salvador, o índice de pais ausentes nos documentos é de 5%.
O bebê de Lídia nasceu em um hospital público da cidade com nome católico, onde vivem 8,4 mil pessoas.
Na madrugada em que a estudante foi ao hospital parir, há seis anos, quatros mulheres deram à luz seus bebês— só uma delas estava acompanhada. “Estava em desespero, cheguei a pensar em doação, mas desisti”, lembra Lídia, que pediu para que seu nome fosse modificado para evitar exposição, ainda mais, na cidade.
O registro completo de crianças é um direito previsto pela Constituição Federal e o Estatuto da Criança e do Adolescente, e pode garantir o acesso à pensão alimentícia e herança. Já o abandono afetivo deixa sequelas psíquicas, têm mostrado as pesquisas.
Hoje aos seis anos, o filho de Lídia pergunta sobre o pai, a quem nunca conheceu. Nesses momentos, ele fica mais agitado. “Ele ainda é muito pequeno para entender. Explico que o pai dele quis viver longe e estimulo meu pai a ser a figura paterna dele”, conta a empreendedora, que mora na casa dos pais com o filho.
O número de crianças que só são registradas pela mãe só tem crescido no Brasil.
No ano passado, dos 2,5 milhões nascidos no Brasil, 172 mil não foram reconhecidos legalmente pelos pais — 5% a mais que em 2022. Diariamente, 35 crianças não foram registradas pelo pai na Bahia.
As possíveis explicações governamentais para esses números são os três anos de pandemia da covid-19, que distanciaram cidadãos de serviços básicos e enfraqueceram mutirões de reconhecimento de paternidade.
Contra esse atraso, os órgãos públicos respondem com campanhas. Fora do institucional, no entanto, há um passivo histórico a ser eliminado: as múltiplas violências contra as mulheres, que também impactam nos índices de indocumentados.
Foi do que Lídia teve ainda mais certeza logo depois do filho nascer. O pai biológico da criança exigiu um exame de DNA, teste que centraliza o acesso à paternidade desde a Lei da Paternidade, de 1992.
Ele retornou com um resultado que surpreendeu Lídia: negativo. “É impossível o filho não ser dele”. Depois de considerar judicializar a questão, ela ponderou o desgaste emocional de um processo e abandonou a ideia.
Onde o abandono é maior
São Domingos é uma típica cidade pequena do interior baiano. Os moradores estão empregados na agricultura, na prefeitura, no comércio ou em trabalhos temporários longe de lá. As opções de lazer estão nos barzinhos e na praça central.
Menos de 10% da população têm emprego formal e ganha, em média, R$ 1,8 mil, calcula o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Já 46% dos moradores têm renda de meio-salário mínimo (R$ 700), por mês.
A única vez em que o nome do município teve alcance nacional foi em março de 2023, quando um nativo foi preso por submeter a trabalho escravo empregados numa vinícola na região Sul do Brasil — entre eles, conterrâneos.
O abandono paterno é democrático, mas se destaca em manchas geográficas, com características socioeconômicas como as de São Domingos.
No Norte e Nordeste brasileiro, estão os maiores índices de crianças registradas sem registro do pai do país — 10% e 8%, respectivamente.
Estudos já indicam como contextos socioeconômicos e culturais, além da falta de acesso a serviços básicos, impactam no índice de registros civis.
“Dentro das nossas questões sociais e econômicas, muitas pessoas não têm nem escolaridade, nem na rede familiar, para saber dos nossos direitos”, explica Teresa de Oliveira, advogada e doutora em família pela Universidade Católica de Salvador.
O desconhecimento de gestões municipais sobre o índice de pais ausentes é parte do problema.
“Imaginei que esse problema da falta de registro paterno estivesse superado”, afirma Ana Gomes, coordenadora do Centro de Referência de Assistência Social (Creas) de São Domingos, que reconhece que o machismo “reprime a demanda” de mães e filhos.
“Já aconteceram situações de as pessoas não quererem ir atrás de registrar o filho porque vão ficar mal faladas. Outra questão cultural é quando os pais não mantêm um relacionamento na gestação, aí o homem não registra depois”, perfila.
Frequentemente, cidades com índices elevados de abandono paterno estão próximas. São Domingos está a 30 km de Nova Fátima, onde, desde 2016, 16% dos nascidos não foram registrados pelo pai.
“Enfrento muito julgamento. Dentro e fora da família”, compartilha Camila Souza, mãe de um bebê de um ano.
No início do puerpério, enfrentou ataques de ódio nas redes sociais. “Começaram a me xingar. Diziam que eu tinha sido criativa para escolher o pai do meu bebê, se ia viver de pensão”, recorda ela, que não pretende cobrar judicialmente a participação do pai na criação do menino.
Desde 2012, o número de mães que cuidam sozinhas dos filhos cresceu 17%, segundo a Fundação Getúlio Vargas.
Em Andorinha e Antônio Gonçalves, que juntas têm 25 mil moradores e estão separadas por 60 quilômetros, a pergunta “é filho de quem?” ainda faz sentido.
Uma em cada sete crianças nascidas nessas cidades desde 2016 só pode responder o nome da família materna.
É o caso dos três filhos de Adriele Silva, 29. “Tem dias que minha filha mais velha percebe meu cansaço e me fala: ‘Mamãe, pode ir descansar, quero ser sua melhor amiga’”, conta ela, que está desempregada.
Metade da população de Andorinha sobrevive com R$ 680 — o salário mínimo é R$ 1,4 mil — por mês. A família de Adriele vive da renda do Bolsa Família e do Benefício de Prestação Continuada para pessoas com deficiência – o filho do meio dela é autista.
Às vezes, a primogênita pergunta à mãe sobre o pai. Mas logo se arrepende: “Não quero saber dele”. Adriele conhece esse sentimento.
Criança, ela também se perdia na idealização de um pai que fugiu da cidade ao descobrir que teria uma filha.
O nome dele só consta no registro civil dela por um favor do funcionário do cartório à época. Foi o avô dela quem levou os documentos do filho e registrou a neta com os dados paternos.
Em Andorinha, as jazidas de cromo, amazonita e mármore empregam nativos e forasteiros. O pai da filha mais velha de Adriele desembarcou de São Paulo em Andorinha para um trabalho temporário.
Os dois se conheceram há 10 anos, Adriele “gostava muito” do rapaz, até que ele a abandonou quando soube que esperavam um filho.
“As pessoas são atrasadas. É tanta coisa, que se a gente for falar sobre isso, passa o dia conversando. Cidade pequena, sabe? Aqui eu tenho que escutar: ‘ah, é porque é filho de mãe de solteira'”, desabafa.
Esse comportamento reverbera outro aspecto associado a altos índices de crianças não registradas — a idealização da ideia de família.
“Normalmente, são locais em que ainda há uma idealização muito forte de família, da ideia romântica, mas sem o entendimento do que é parentalidade responsável”, avalia a pesquisadora Teresa.
Em Andorinha, o Creas foi criado após a Prefeitura perceber a quantidade de demandas de violência contra mulher e negligência com crianças.
Na Bahia, só nos primeiros dois meses deste ano, houve 1.134 denúncias de violência contra a mulher prestada no Disque 100 do Ministério da Justiça e Direitos Humanos. O estado é o quarto mais violento do Brasil para mulheres, em número brutos, nessa lista.
Busca pelo DNA recai sobre as mulheres
Os dois caminhos para ter acesso ao exame de DNA gratuito são a Defensoria e o Ministério Público.
As cidades de São Domingos, Nova Fátima, Andorinha e Antônio Gonçalves não possuem sedes desses órgãos.
No ano passado, foram realizados 191 exames de DNA mensais, em média, pela Defensoria – 2.288, um número 12% maior que o de 2022.
Testes de paternidade são oferecidos em campanha da Defensoria Pública
Na busca por um direito da criança, é a mulher quem acumula mais uma responsabilidade: a de localizar o pai.
Mãe de uma criança de cinco anos sem o registro completo, Ana Santos já viajou mais de 20 vezes os 45 km que a levam de Antônio Gonçalves, onde mora, até Senhor do Bonfim, onde há uma comarca da Defensoria. Lá, foram realizados 35 exames de DNA em 2023.
Desempregada, ela paga R$ 40 por ida e volta e divide a casa da mãe com os três filhos (nenhum deles têm contato com o pai) e um irmão. “Meu pai foi presente. Nunca pensei passar por isso”, diz.
Na penúltima vez em que esteve na Defensoria, Ana ouviu de um funcionário que teria de levar uma testemunha até lá para provar a relação entre ela e o pai do filho. O pedido do funcionário traduz o que os números apresentam.
Um estudo do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, de junho, mostra que 84% das pessoas têm ao menos um preconceito contra as mulheres.
Se os dados sobre os pais, como endereço e telefone, são desconhecidos, o processo de reconhecimento de paternidade se complica. E isso acontece com frequência, já que homens que fogem da paternidade costumam desaparecer.
Quando encontrados, eles ainda podem afirmar que não têm dinheiro para a locomoção até a Defensoria ou MP.
“Se isso acontece, o Estado não faz [nada]. A saída é a judicialização”, lamenta Adriano Pereira, um dos coordenadores da Especializada de Família da Defensoria.
A descrença no sistema judiciário, no entanto, é outra razão que freia a busca pelo atendimento, elenca ele.
A reportagem tentou contato com a Arpen, mas não obteve retorno.
Brasil tem problema histórico de registros
Em um dos distritos de Antônio Gonlçalves, chamado São João, nasceu Angélica Bezerra, 70. Quando pequena, corria para longe quando o homem que diziam ser o pai dela estava por perto. Ele, por sua vez, fingia desconhecer a menina.
Na infância, ela sofreu preconceito por ser criada só pela mãe. Em tempos de seca, o licurizeiro provia os coquinhos que alimentavam a família. O pai biológico de Angélica era fazendeiro.
A agricultora cresceu com medo de que a história dela se repetisse com as filhas: “Tinha medo de que elas não fossem registradas, tinha medo de me entregar a alguém por isso. Eu era a ‘filha de mãe solteira’. Era e é grande o preconceito”.
Ainda que esse homem estivesse disposto a reconhecê-la, legal e afetivamente, haveria problemas. O sistema funcionava para excluir e abonava de qualquer responsabilidade o adultério do homem.
Na época em que Angélica nasceu, até 1949, um pai só poderia reconhecer um filho tido fora do casamento se fosse “dissolvido o matrimônio” e a criança tivesse sido gerado antes dele.
Esse filho era chamado de “adulterino” e tinha direito à metade da herança de um filho chamado de “legítimo”. Essa concepção vigorou até 1977, quando surgiu a Lei do Divórcio, explica a antropóloga Sabrina Finamori, que pesquisa paternidade na Universidade de Campinas (Unicamp).
A partir daí, homens casados poderiam reconhecer a paternidade de filhos tidos fora do matrimônio, independentemente do momento da concepção, mas eles ainda tinham direito só à metade da herança paterna.
Parte dos juristas discordava nesse ponto: acreditava que o dever à fidelidade do homem era maior que as obrigações de um pai com um filho.
Foi a partir da Constituição Federal de 1988 que os filhos passaram a ter os mesmos direitos e serem chamados pelos mesmos nomes, sem alcunhas pejorativas.
Nesse percurso de mudanças, Sabrina enxerga ambivalências: “Como se houvesse um discurso de que o Estado pode abrir mão das suas responsabilidades se o registro estiver completo. Outra ambivalência aparece num discurso de que filhos sem a presença paterna seriam violentos”.
Durante o doutorado em Ciências Sociais, a pesquisadora entrevistou, nas filas de espera por atendimento na Defensoria, adultos em busca por atendimento no serviço de reconhecimento de paternidade.
Do que ouvia delas, a pesquisadora conseguia perceber que eram movidos por desejos práticos — como o de conhecer as próprias origens e reivindicar a herança — e um mais subjetivo.
No fundo, pensavam que não agiam só por si, mas pelas mães.
*Nome fictício, a pedido da entrevistada.
Fonte: Correio 24 Horas