Histórico resumido da guarda compartilhada
O escopo deste estudo restringe-se a uma análise da modificação parcial do regime da guarda compartilhada, a partir da vigência da Lei 14.713/2023, especificamente no que se refere à nova redação do artigo 1.584, parágrafo 2º do Código Civil, trazida pelo novo diploma legal.
O regime da guarda compartilhada foi adotado como regra geral em nosso sistema jurídico a partir da vigência da Lei 11.698/2008, que alterou os artigos 1.583 e 1.584 do Código Civil, estabelecendo o compartilhamento da guarda para pais que não chegassem a um acordo sobre a questão.
Estabeleceu-se que a guarda unilateral seria admitida tão somente nas hipóteses em que voluntariamente um dos pais renunciasse à guarda ou na hipótese de absoluta impossibilidade de exercício da guarda por alguma razão relevante, restando claro que a modalidade prioritária de guarda é a compartilhada e a guarda unilateral uma exceção.
Ao inserir a guarda compartilhada como regra, o legislador objetivou criar uma modalidade de guarda que permite a participação de ambos os genitores nas principais decisões concernentes a todos os aspectos da vida dos filhos, proporcionando um melhor desenvolvimento psicológico e emocional da criança ou do adolescente, a partir do compartilhamento da responsabilidade e de todos os deveres inerentes ao exercício do poder familiar, que subsiste para ambos os genitores, mesmo após a separação.
Não há, nesta modalidade, qualquer supremacia de um genitor em relação ao outro, buscando-se, desta forma, um equilíbrio no relacionamento paterno-filial e materno-filial, que enriquece a formação e criação da prole, pela diversidade e coparticipação dos pais, com suas diferentes visões de mundo, no desenvolvimento psicológico, moral e intelectual dos filhos.
Inovação trazida pela Lei 14.713 de 30 de outubro de 2023
Com a entrada em vigor da Lei 14.713, de 30 de outubro de 2023, introduziu-se em nosso ordenamento jurídico, no que concerne à guarda de filhos menores, mais uma exceção à regra da guarda compartilhada, por força da modificação do artigo 1.584, parágrafo 2º, do Código Civil.
Com efeito, não será concedida a guarda compartilhada aos genitores, quando houver elementos que evidenciem a probabilidade de risco de violência doméstica ou familiar.
Inicialmente, tratando-se de norma regulatória do instituto da guarda de menores, deve-se atentar que o destinatário da proteção legal objetivada é fundamentalmente a prole.
É importante ressaltar que a mulher vítima de violência doméstica tem seus direitos assegurados amplamente em legislação extravagante própria (Lei Maria da Penha), sem prejuízo da aplicação das leis penais em vigor em relação às agressões sofridas no âmbito das relações domésticas ou familiares.
Aqui, em sede de guarda de filhos, o interesse do menor é o prevalente, sendo certo que é direito fundamental da criança ou do adolescente ter a efetiva participação de ambos os genitores na sua educação e formação, como indivíduo em desenvolvimento.
Instituindo a novel modificação legislativa uma norma limitadora em relação à guarda compartilhada, expressão direta do exercício do poder familiar e seu principal atributo, há que ser interpretada de forma restritiva e jamais ampliativa ou extensiva, aplicando-se a regra geral de hermenêutica jurídica sobre interpretação de normas.
Com efeito, ao se afastar o genitor da guarda, concedendo-se guarda unilateral para a genitora, pela existência de episódio anterior de violência doméstica, provada ou não, se está limitando sobremaneira a participação do pai no processo de decisão de questões fundamentais da vida dos filhos, em seus diversos aspectos. Interpretação extensiva ou ampliativa da norma em análise configuraria um retrocesso legislativo catastrófico, especialmente considerando-se os avanços sociais e a crescente participação masculina na criação da prole, outrora quase exclusivamente a cargo da mulher.
Estatui o artigo 227 da Constituição que “é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”.
Verifica-se que desde a promulgação da Carta Magna de 1988, é evidente a preocupação do constituinte em colocar à salvo de violência crianças e adolescentes, assegurando, com prioridade, sua proteção integral, que deveria ser buscada pela legislação infraconstitucional, em suas diversas áreas.
Seguindo na esteira da dicção constitucional, institui o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8069/90) o princípio da proteção integral de crianças e adolescentes, em especial em dois dispositivos:
“Art. 3º. A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-se-lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade”.
“Art. 5º. Nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, punido na forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais.”
A inovação trazida pela Lei 14.713/2023, ao modificar o teor do artigo 1584, parágrafo 2º do Código Civil deve ser interpretada como mais uma tentativa de proteção integral da criança e do adolescente, desta feita no que concerne ao regime de guarda a que serão submetidos os filhos, após a separação.
Como já ressaltado, trata-se de norma não de proteção da mulher vítima de violência doméstica ou familiar, vez que outros diplomas legais já se ocupam desta matéria, em especial a Lei 11.340/2006 (Lei Maria da Penha), mas sim de proteção dos filhos de casais que se separam e podem estar expostos a risco de violência doméstica ou familiar, o que afastaria a possibilidade de fixação da guarda compartilhada entre os genitores.
Premissas indispensáveis para o afastamento da guarda compartilhada pela nova redação do artigo 1.584, parágrafo 2º do Código Civil
Parece imperioso, a nosso sentir, o estabelecimento de algumas premissas fundamentais que devem estar presentes para o afastamento da regra geral da guarda compartilhada e a concessão da excepcional guarda unilateral, interpretando-se de forma equilibrada e sensata a nova redação do artigo 1584, parágrafo 2º do Código Civil, trazida pela Lei 14.713/2023:
- A probabilidade de risco de violência doméstica ou familiar deve ser futura, não sendo suficientes agressões ou fatos pretéritos envolvendo os genitores para se afastar a guarda compartilhada.
- A violência doméstica ou familiar a que se refere a norma em análise deve necessariamente impedir ou tornar muito difícil o compartilhamento da guarda do filho, vez que a prole e não a mulher é a destinatária da proteção da norma prevista no artigo 1584, parágrafo 2º do Código Civil.
- O risco de violência tem que ser concreto e não abstrato ou baseado em meras conjecturas, suposições ou argumentações sem lastro probatório, sob pena de esvaziamento da regra geral, que é a guarda compartilhada. Não se pode conceber, por exemplo, que um mero boletim de ocorrência policial com notícia de violência doméstica contra a mulher afaste a possibilidade da concessão da guarda compartilhada dos filhos.
- Quando evidenciado que o menor não se encontra em estado de vulnerabilidade nem há evidências de que a guarda compartilhada ofereça risco à sua integridade física, psicológica ou emocional, a despeito do disposto no parágrafo 2º do artigo 1584 do Código Civil, não se deve afastar a possibilidade de guarda compartilhada, ainda que tenha havido episódio passado de violência doméstica entre os genitores.
- A norma contida no artigo 1.584, parágrafo 2º deve ter interpretação restritiva, para afastar a guarda compartilhada somente nas hipóteses em que haja risco efetivo e comprovado de violência doméstica ou familiar futura, não sendo suficiente a existência, comprovada ou não, de episódios de violência doméstica pretérita entre os genitores, sendo certo que a violência a que se refere o artigo tem que ser de tal natureza a afetar o menor ou impossibilitar o exercício do compartilhamento de responsabilidades entre os genitores.
Risco de interpretação equivocada da inovação legislativa
Pode parecer ao intérprete menos atento da nova redação da norma do artigo 1.584, parágrafo 2º do Código Civil, que automaticamente, em todas as hipóteses em que no âmbito daquela família tenha havido violência doméstica, se concederá a guarda unilateral dos filhos à vítima da agressão, normalmente a mãe.
Tal interpretação simplista atenta contra toda a sistemática da guarda, desde as mudanças implementadas pela Lei 11.698/2008, que modernizou sobremaneira o nosso ordenamento jurídico instituindo e priorizando a guarda compartilhada como modalidade que melhor atende ao interesse dos filhos de casais separados.
De fato, esta interpretação, se vencedora em nossos tribunais, constituiria enorme retrocesso nas relações de família, considerando os imensos avanços que a guarda compartilhada vem trazendo, desde a sua introdução em nosso ordenamento, incentivando e propiciando a paternidade responsável e participativa, que melhor atende ao princípio da proteção integral dos filhos menores.
A propósito, já teve o egrégio Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro oportunidade de enunciar, em brilhante acórdão, tese no mesmo sentido do aqui sustentado:
APELAÇÃO CÍVEL. GUARDA COMPARTILHADA. Versa a hipótese ação de guarda unilateral, em que pretende a autora obter a guarda definitiva unilateral de seu filho menor. Sentença de procedência parcial. A concessão de medida protetiva em favor da genitora ou a condenação do genitor no âmbito do Juizado da Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, por si só, não impedem o convívio do menor com o genitor ou a aplicação da guarda compartilhada, eis que não há notícia de qualquer risco à integridade do menor. Na espécie, os estudos social e psicossocial realizados, abordando as dinâmicas familiares das partes, recomendam a aplicação do instituto da guarda compartilhada ao ex-casal. Sentença de procedência parcial mantida. Desprovimento do recurso. Verba honorária majorada.
(TJ-RJ; Apelação Cível nº 0040795-24.2016.8.19.0021; 15ª Câmara de Direito Privado; Rel. Des. Maria Inês da Penha Gaspar; j. em 10.05.2023)
Como se depreende, nem mesmo a concessão de medida protetiva em favor da mulher pelo Juizado da Violência Doméstica afasta, por si só, a convivência do genitor ou a aplicação da guarda compartilhada, quando inexiste risco à integridade do filho.
A supressão da guarda paterna por conta de episódios pretéritos de violência doméstica envolvendo tão somente os genitores afronta o direito constitucional na medida que suprime direito fundamental do filho a uma família equilibrada, ao afastar a figura paterna de decisões fundamentais relativas a variados aspectos de sua formação como pessoa em desenvolvimento.
Ademais, constituiria uma penalidade desarrazoada ao genitor, que se prolongaria por anos, sem prazo determinado, mesmo que comprovadamente se tratasse de um pai zeloso, carinhoso e responsável, afastando-o do poder decisório sobre questões relevantes concernentes à educação, saúde e outras necessidades específicas do filho, que impõem a sua participação.
Evidentemente não é essa a intenção da norma, devendo-se afastar a guarda compartilhada tão somente em casos graves de violência doméstica, em que o risco seja concreto, presente ou futuro, envolva o menor ou o coloque em situação de vulnerabilidade.
Na apuração desta situação de vulnerabilidade, deverá valer-se o juízo de família de todos os meios, inclusive de equipe multidisciplinar, através de estudos sociais e avaliações psicológicas sempre que necessário, no caso concreto, para, só então, ao final da instrução, em hipóteses excepcionais, afastar a guarda compartilhada.
Uma preocupação que já se instala na mente de todos os operadores do Direito de Família, com a edição da nova lei em comento, é justamente a possibilidade de aumento significativo de atos de alienação parental, especialmente a propagação de falsas notícias de violência doméstica, justamente com a finalidade de afastamento da guarda compartilhada.
Não raro o que se observa na prática é que muitas vezes notícias de violência doméstica são levadas à Autoridade Policial, sem qualquer lastro na realidade, sendo concedidas pelo Judiciário medidas protetivas acautelatórias, para, ao fim do processo, no entanto, serem os acusados absolvidos por razões variadas e as supostas vítimas processadas por denunciação caluniosa, com frequência.
Assim, toda a cautela deve ser empenhada, pelos juízos de família, na aplicação da restrição à guarda compartilhada em razão de risco de violência doméstica ou familiar, como estatuído pela Lei 14.713/2023, que, frise-se, deve ter interpretação restrita.
A concessão da guarda unilateral deve permanecer como exceção, apenas para hipóteses excepcionais, tão somente quando a situação de violência doméstica implicar em risco à segurança ou integridade física ou psicológica da prole, inviabilizando o compartilhamento da guarda.
Conclusão
A guarda compartilhada segue sendo a regra e a modalidade prioritária em nosso ordenamento jurídico, permanecendo como exceção a guarda unilateral.
A nova redação do artigo 1.584, parágrafo 2º do Código Civil, trazida pela Lei 14.713/2023 deve ser interpretada restritivamente, somente se afastando a guarda compartilhada em razão de risco presente ou futuro de violência doméstica que possa afetar os filhos ou colocá-los em situação de vulnerabilidade física, psicológica ou emocional, devidamente demonstrada e comprovada ao longo do processo judicial, com arrimo, se necessário, em estudo social e avaliação psicológica.
A existência de episódios pretéritos de violência doméstica envolvendo os genitores, sem exposição de risco à prole, não implica, por si só, no afastamento da possibilidade de fixação da guarda compartilhada, por se tratar de modalidade de guarda que melhor atende ao interesse dos filhos e ao princípio da proteção integral preconizada na Constituição Federal e na legislação infraconstitucional, notadamente no Código Civil e no Estatuto da Criança e do Adolescente.
Fonte: ConJur