Existem muitas situações práticas pelas quais passamos em nosso cotidiano que acabam se tornando normais e não nos damos conta de toda a complexidade que as permeia. Principalmente quando tais eventos não nos tocam pessoalmente em nenhuma esfera delicada de nossas vidas.
Continuamente nos é exigido que comprovemos quem somos, o que fazemos por meio de informações que são consignadas em uma série de documentos de identificação pessoal que, em sua larga maioria, são obrigatórios. Nossos dados pessoais são coletados muitas vezes sem que tenhamos a plena consciência disso, mas não são raras as vezes em que o fazemos de forma expressa e consentida, como ao preenchermos fichas de atendimento e cadastros no comércio, seja no mundo físico ou virtual.
O fornecimento de tais dados e sua publicização encerra em si a exposição de elementos de identificação revestidos de um caráter eminentemente particular, manifestamente personalíssimo, como é o caso daqueles atrelados à sexualidade.
Ainda que persista uma enorme confusão entre o que encerra a ideia de sexo e de gênero, muitas vezes utilizadas como sinônimos, como já explicitamos em coluna anterior1, é importante que se inicie o presente texto com um questionamento bastante singelo: qual a necessidade de informações referentes a aspectos da sexualidade em documentos de identificação pessoal? Por qual razão há a sua inclusão em formulários e fichas cadastrais?
Não se olvida aqui que, ao menos no caso dos documentos de identificação pessoal, a origem de tal imposição repousa na Lei de Registros Públicos que, expressamente, no art. 54, 2º, determina que a informação quanto ao sexo constará do assento de nascimento. Tampouco se ignora que tal dado é extraído de outro documento, a Declaração de Nascido Vivo (DNV), onde, conforme determinado no art. 4º, III da lei 12.662/12, haverá de se indicar o sexo do recém-nascido.
Como já manifestado alhures2 não há em nenhuma dessas normas a imposição expressa que a indicação do sexo seja realizada entre certas variáveis, em que pese o modelo da Declaração de Nascido Vivo (DNV) trazer, em campo de escolha fechada, as alternativas (M) Masculino, (F) Feminino ou (I) Ignorado, em concepção equivocada que além de usar expressões eminentemente associadas ao gênero traz uma restrição a um binarismo que não encontra respaldo na ciência médica3.
Consignar a informação relativa ao sexo do recém-nascido na Declaração de Nascido Vivo (DNV) ou fazê-la constar do assento do Registro Civil de Nascimento não representa, por si só, um problema, pois indica uma característica física daquele indivíduo, que é utilizada por vários motivos, dentre os quais se destaca a necessidade de pormenorização dos dados de identificação da pessoa natural a fim de diferenciá-la de outra em casos de similitude de informações (filhos de mesmo pai, gêmeos, homonímia), bem como na hipótese do prenome do registrado poder ser utilizado para pessoas de ambos os sexos, como Jaci e Ivani, por exemplo, que sem a indicação do sexo pode gerar problema no momento da correta identificação da pessoa.
Cumpre salientar, também, que a Declaração de Óbito (DO), instituída pela lei 11.976/09, possui no campo de número 10 a indicação do sexo da pessoa falecida, atendendo ao previsto no art. 80, 3º da Lei de Registros Públicos (LRP). Nota-se, aqui, a repetição do mesmo erro indicado anteriormente quando da análise da Declaração de Nascido Vivo (DNV) vez que traz como alternativas (M) Masculino, (F) Feminino ou (I) Ignorado. De se pontuar que indicar na Declaração de Óbito o sexo do falecido, além das razões já citadas, é relevante para que, na morte de pessoa indigente (sem dados de identificação conhecidos), seja possível, na necessidade de uma verificação futura, ter o máximo de dados do falecido para que se torne viável seu reconhecimento.
Contudo não se afigura como adequado que algo tão íntimo e personalíssimo venha a ser exposto de forma indiscriminada a quem quer que seja, por estar descrita em documentos de identificação pessoal ou outros de natureza pública.
De se notar que nas certidões de nascimento e óbito, cujos modelos foram estabelecidos nos anexos do Provimento 63 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), há campo específico para a aposição da informação referente ao sexo, contudo a Lei de Registros Públicos (LRP) não impõe que esta seja exposta ou franqueada a quem quer que seja.
Basta assinalar que nem todas as informações exigidas pela Lei de Registros Públicos (LRP) no art. 54 ao tratar do assento de nascimento são consignadas na Certidão de Nascimento estabelecida pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), como, por exemplo, “… a naturalidade, a profissão dos pais, o lugar e cartório onde se casaram, a idade da genitora, do registrando em anos completos, na ocasião do parto, e o domicílio ou a residência do casal” (7º), ou “os nomes e prenomes, a profissão e a residência das duas testemunhas do assento, quando se tratar de parto ocorrido sem assistência médica em residência ou fora de unidade hospitalar ou casa de saúde” (9º).
Mediante uma apreciação singela da legislação vigente se verifica que não há a determinação expressa de que a informação quanto ao sexo de quem quer que seja deva ser exposta em documentos públicos. E, no caso em que se vê tal exposição prevista nos modelos dos documentos, não há na lei o correlato que impõe que do modelo conste tal dado.
Contudo, em que pese nossa manifesta oposição ao fato de tal informação quanto a sexualidade estar disponível a quem quer que seja que venha a acessar documentos públicos4, o fato é que atualmente é isso que se tem como consolidado em nosso país. E, enquanto esse equívoco técnico não for superado, é necessário lidar com a situação.
Porém mesmo o que se tem utilizado como prática não se coaduna com o determinado, vez que experienciamos uma realidade em que grassa uma enorme confusão com relação aos aspectos que se vinculam à sexualidade, como vem sendo divulgado nessa coluna desde o seu texto inaugural5.
Baseado na acepção técnica de que o sexo está vinculado, em linhas panorâmicas, à constituição física da genitália da pessoa6, já que a informação que consta da Declaração de Nascido Vivo (DNV) e que será usada como fonte original para revelar o sexo é fundada, em quase todos os casos, na constatação feita pelo médico quando do nascimento, qual a relevância jurídica de que todos que tenham acesso à certidão de nascimento de alguém possam saber se aquela pessoa possui pênis ou vagina?
A exposição de tal informação além de desnecessária tem o condão de ferir o direito à intimidade que é tanto uma garantia constitucional como um direito da personalidade. E reitera-se o questionamento acima proposto: a quem assiste interesse jurídico de ter acesso, por meio da certidão de nascimento ou óbito, à genitália da pessoa a qual tais documentos se refere?
Mas a normalização de certas condutas acaba por fazer com que algumas pessoas sequer se atentem para o fato de que sua intimidade está sendo violada até que venham a se deparar com alguma situação fática em que se sentem expostas em decorrência da existência de tal dado em seus documentos.
Nem mesmo nos aprofundaremos na análise de outros documentos que trazem a indicação do sexo da pessoa, como é o caso do passaporte e também da Carteira Nacional de Identificação, regulamentada pelo decreto 10.977/227, que, em que pese ter tal questão pendente de análise, trazia na versão inicial a previsão de que a indicação do sexo era elemento obrigatório do documento (art. 11, V), reinserindo em nossa sociedade problemas já superados8.
Para além dessa construção quanto à necessidade ou não de que tal informação conste nos documentos é de se pontuar que desde a entrada em vigor da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) fixou-se que dados referentes à sexualidade são considerados dados sensíveis e, portanto, seu tratamento merece uma atenção diferenciada.
O art. 5º da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) ao definir, no inciso II, o dado pessoal sensível, assevera que serão assim considerados os que se refiram à vida sexual e, por óbvio, o sexo da pessoa está inserido em tal contexto. Ato contínuo o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) elaborou o Provimento 134/22, destinado aos registradores e notários, que os coloca na condição de controladores dos dados tratados (art. 4º) e responsáveis pela exposição de dados sensíveis9, sendo que a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) fixa que o controlador é o responsável pelos danos que causar no exercício de atividade de tratamento de dados (art. 42)10.
Tal raciocínio pode conduzir a uma conclusão de que estamos diante de um conflito aparente de normas ao se considerar que, ao mesmo tempo que a Lei de Registros Públicos (LRP) determina a indicação do sexo nos assentos de nascimento e óbito (mas não nas certidões de nascimento e de óbito), a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) veda a exposição de dados pessoais sensíveis.
A solução lógica parece ser simplesmente seguir a lei e não se inserir a informação sobre o sexo na certidão de nascimento ou óbito, vez que os modelos impostos não estão em perfeita consonância com o ordenamento jurídico, permitindo apenas o acesso a tal elemento pela certidão de inteiro teor, requerida pela própria pessoa ou mediante autorização judicial.
Essa imposição de exposição da sexualidade oriunda da existência de um campo destinado ao “sexo” na certidão de nascimento ou de óbito, conforme previsto pelos modelos trazidos no Provimento 63 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), constitui-se em um especial obstáculo no caso das pessoas transgênero.
Isso se dá em decorrência de toda a miscelânea que se faz ao apor no campo destinado ao sexo uma característica atrelada ao gênero, como é o caso das expressões masculino e feminino. Ao trazer em documentos acessíveis uma informação que não deveria estar ali e que, também, se mostra equivocada, o nosso Poder Público dá azo a sérios problemas, como a necessidade de que se altere o documento para atender às premissas atualmente postas, ainda que erradas.
Como se associa o que consta dos documentos ao gênero (que é o que está socialmente exposto)11, as pessoas transgênero viram-se na necessidade de solicitar que o seu “sexo” seja consignado em consonância com a sua identidade de gênero em seus documentos, mesmo que não tenham realizado qualquer sorte de processo transgenitalizador.
E se trata de um pleito absolutamente lógico dentro do atual estado da arte, mas que, em sua essência, mostra-se inexato pois o que ele pretende efetivamente é o reconhecimento de sua identidade de gênero, e não do seu sexo.
E essa questão vem apresentando um novo desdobramento, novamente reflexo do manifesto descompasso de se consignar o “sexo” em documentos públicos e de se confundir o que é sexo e o que é gênero. Como indicado de forma recorrente nessa coluna temos buscado sempre estabelecer de forma bastante ciosa a distinção entre os elementos que sustentamos compor a sexualidade12. Com isso reiteramos que a distinção técnica entre os conceitos de sexo e gênero colocam-se como relevantes, não sendo admissível a confusão entre eles.
Tal lembrança é aqui trazida face a existência de uma série de julgados em tempos recentes entendendo pela alteração da informação consignada quanto ao sexo nos documentos para fazer constar a expressão “não binário”, como se deu em decisão do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (TJ/DF). Conforme veiculado, o Corregedor da Justiça do Distrito Federal, após estudo da Coordenadoria de Correição e Inspeção Extrajudicial (Cociex) em parceria com a Associação dos Notários e Registradores do Distrito Federal (Anoreg/DF), decidiu que pessoas “não-binárias” poderiam fazer a alteração do “gênero” diretamente nos cartórios extrajudiciais, aplicando o Provimento 73 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), o qual foi incorporado pelo Provimento 149/23.
No Estado da Bahia, o Tribunal de Justiça, por meio do Provimento Conjunto 08 CGJ/CCI /2022-GSEC, prevê a possibilidade de que seja feito requerimento para “não binário” quando da “alteração da anotação de gênero” (§ 4º) garantida a “toda pessoa maior de 18 (dezoito) anos completos habilitada à prática de todos os atos da vida civil” que “poderá requerer ao Registro Civil das Pessoas Naturais a alteração e a averbação do prenome e do gênero no registro de nascimento, a fim de adequá-los à identidade autopercebida, independentemente de autorização judicial” (art. 1º).
No mesmo sentido surge o Provimento 16/22 da Corregedoria Geral da Justiça do Rio Grande do Sul (CGJ-RS) que “autoriza pessoas não binárias a mudar registros de prenome e gênero diretamente nos cartórios do Estado” determinando a alteração do art. 161 da Consolidação Normativa Notarial e Registral, para que, em seu § 4º, conste a permissão de que “a alteração da anotação de gênero” permita a inclusão da expressão “não binário”.
A confusão que apontamos existir no decorrer do presente texto está estampada no que estabeleceram os provimentos dos Tribunais de Justiça do Distrito Federal e Territórios, Bahia e Rio Grande do Sul. E emanam exatamente de quem tem a incumbência de julgar os casos que versam sobre sexualidade que chegam ao Poder Judiciário.
Embora tenhamos muito claro que quando tratamos de sexo não estamos diante de uma situação binária é de se entender que nesse aspecto aquele que não se insere em uma das condições do binarismo (homem/macho ou mulher/fêmea) há de ser designado como intersexo, que é a nomenclatura utilizada para tais casos13.
A expressão “não binário” tem sido utilizada nos estudos vinculados à sexualidade como um elemento de gênero, atribuído a quem não se entende pertencente nem ao masculino, nem ao feminino. Autorizar que se insira a expressão “não binário” nos documentos tem, em nosso sentir, o condão de ampliar a celeuma já estabelecida com relação ao tema.
Como já asseveramos outrora essa confusão de se entender pela viabilidade do “não-binário” nos documentos é claramente fruto da falha originária que tem a Declaração de Nascido Vivo (DNV) por fonte, pois é ali que pela primeira vez se designa alguém como masculino e feminino, designativos de gênero, e não como homem/macho ou mulher/fêmea, indicativos de sexo, como alternativas a serem assinaladas.
Em respeito à coerência não podemos ignorar que a mesma perspectiva pode ser suscitada quando se trata de alteração da indicação de sexo solicitada pela pessoa transgênero nos termos firmados nas decisões do Superior Tribunal de Justiça (STJ), Supremo Tribunal Federal (STF) e mesmo de Cortes Internacionais. Todavia, novamente, essas se fazem coerentes segundo os parâmetros atualmente postos.
Em que pese sermos manifestamente favoráveis a tal alteração pelos motivos aqui amplamente descritos, entendemos que se trata de uma solução paliativa que busca mitigar todo o preconceito e estigma experienciados pelas pessoas transgênero, sendo o mais adequado mesmo a retirada de tal dado dos documentos de identificação pessoal, ainda que mantido nos registros, sem que seja divulgada tal informação em certidões comuns (2as vias).
De todo o exposto essa coluna busca essencialmente convidar a quem nos lê à reflexão: por qual motivo meus documentos devem expor o meu sexo? Você já havia se feito essa pergunta?
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1 https://www.migalhas.com.br/coluna/direito-e-sexualidade/388613/a-confusao-entre-sexo-e-genero-e-seus-impactos-juridicos
2 SANTOS, Thais Emilia de Campos dos; CUNHA, Leandro Reinaldo da; MARTINS, Raul Aragão. O registro de crianças intersexo no Brasil. Revista Contemporânea, v.3 n.9, p.14270 – 14294, 2023.
3 https://www.migalhas.com.br/coluna/direito-e-sexualidade/385836/intersexo-intersexual-e-a-importancia-da-distincao-para-fim-juridico
4 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Identidade e redesignação de gênero: Aspectos da personalidade, da família e da responsabilidade civil. 2 ed. rev. e ampl., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, p. 186.
5 https://www.migalhas.com.br/coluna/direito-e-sexualidade/380547/sexualidade-como-elemento-juridico-relevante-e-seus-aspectos-basicos
6 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Refúgio/asilo político para pessoas LGBTI+. Revista Direito e Sexualidade. Salvador, v.3, n.2, p.189-204, 2022, p. 191.
7 https://www.migalhas.com.br/coluna/direito-e-sexualidade/381882/mudanca-de-nome-e-sexo-nos-documentos-das-pessoas-trans
8 Identidade de gênero, efetividade e responsabilidade civil. Transgêneros e o processo transexualizador. Coluna Direito Civil. Editora Forum, disponível em: https://www.editoraforum.com.br/noticias/coluna-direito-civil/identidade-de-genero-efetividade-e-responsabilidade-civil-transgeneros-e-o-processo-transexualizador/.
9 Art. 4º Os responsáveis pelas delegações dos serviços extrajudiciais de notas e de registro, na qualidade de titulares das serventias, interventores ou interinos, são controladores no exercício da atividade típica registral ou notarial, a quem compete as decisões referentes ao tratamento de dados pessoais.
10 Art. 42. O controlador ou o operador que, em razão do exercício de atividade de tratamento de dados pessoais, causar a outrem dano patrimonial, moral, individual ou coletivo, em violação à legislação de proteção de dados pessoais, é obrigado a repará-lo.
11 CUNHA, Leandro Reinaldo da. A responsabilidade civil face à objeção ao tratamento do transgênero sob o argumento etário. Responsabilidade Civil e Medicina, 2. ed., Indaiatuba: Editora Foco, p. 307 – 321, 2021, p. 309-310
12 https://www.migalhas.com.br/coluna/direito-e-sexualidade/380547/sexualidade-como-elemento-juridico-relevante-e-seus-aspectos-basicos
13 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Identidade e redesignação de gênero: Aspectos da personalidade, da família e da responsabilidade civil. 2 ed. rev. e ampl., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, p 26-27.
Fonte: Migalhas