Samara Borges é registradora civil em Santo Estevão e interina em Antônio Cardoso
Conforme a evolução das relações sociais, o conceito de família ganhou um novo sentido. Assim sendo, o reconhecimento legal da paternidade socioafetiva é um ato que estabelece a valorização de laços afetivos e sociais na formação de uma família e reconhece a possibilidade de existência de um vínculo de paternidade entre uma criança e um indivíduo, que sobressai os laços biológicos e sanguíneos.
Em entrevista exclusiva à Arpen/BA, Samara Borges, registradora civil titular do Cartório de Registro Civil das Pessoas Naturais da Comarca de Santo Estevão/BA e registradora civil e tabeliã interina do Cartório de Registro Civil com Funções Notariais de Antônio Cardoso/BA, contou que ao longo dos anos de atuação na atividade extrajudicial, observou mudanças significativas no que tange às competências das serventias extrajudiciais, especialmente nas transformações das atividades registrais.
“À medida que novos provimentos do Conselho Nacional de Justiça e alterações legislativas passaram a permitir uma gama de possibilidades nas resoluções de questões pela via administrativa […]provimentos como o 63/2017 e 83/20219 do CNJ, passaram a prever o reconhecimento da paternidade socioafetiva diretamente na serventia extrajudicial, o que trouxe maior acesso à população a questões relacionadas ao Direito e que pareciam distantes de serem concretizadas para muitos cidadãos”, considerou a registradora.
Samara Borges Fernandes Rocha é mestre em Família na Sociedade Contemporânea pela Universidade Católica do Salvador – Ucsal (2021), pós-graduada em Direito Administrativo pela Universidade Cândido Mendes – Ucam (2015) e em Direito Público pela Universidade Anhanguera – Uniderp (2014). Graduada em Direito pela Universidade Federal da Bahia (2012), além de já ter atuado como advogada conciliadora pelo Tribunal de Justiça do Estado da Bahia.
Confira a entrevista completa:
- Arpen/BA – O que se entende por paternidade socioafetiva?
Samara Borges – A paternidade socioafetiva nada mais é do que a paternidade através do afeto. Esse entendimento surge no ordenamento jurídico a partir da evolução do conceito de família, em que não é mais a consanguinidade o fator determinante para definir a estrutura e composição familiar. Neste sentido, elementos como a afinidade, amor e respeito passam a compreender a essência da formação da família da sociedade contemporânea, e consequentemente pais e mães socioafetivos surgem nesse contexto. Portanto, a paternidade socioafetiva corresponde ao reconhecimento jurídico da existência de filiação independente de elementos biológicos, levando-se em consideração, tão somente, a relação de afeto desenvolvida entre o registrado e o seu pai ou mãe socioafetivo (a).
2. Arpen/BA – Quais os requisitos para o reconhecimento legal e extrajudicial de uma paternidade socioafetiva no país?
Samara Borges – Os requisitos para o reconhecimento da paternidade socioafetiva estão previstos no Provimento 63/2017, posteriormente alterado pelo Provimento 83/2019, ambos do Conselho Nacional de Justiça. O legislador estabeleceu requisitos tanto para o reconhecido como para o pai ou mãe socioafetivo, como por exemplo: o reconhecimento voluntário da paternidade ou da maternidade socioafetiva pode acontecer para pessoas acima de 12 anos, mediante consentimento, sendo um procedimento a ser realizado perante os oficiais de Cartório de Registro Civil das Pessoas Naturais, tratando-se de um ato irrevogável, que somente poderia ser desconstituído pela via judicial, na ocorrência de algum vício de vontade, fraude ou simulação. Sendo o reconhecido menor de 18 anos, faz-se necessário que os genitores biológicos expressem seu consentimento. Ademais, aquele que deseja declarar-se como pai/mãe socioafetivo de alguém, precisa ser maior de idade, ser ao menos dezesseis anos mais velho que o filho a ser reconhecido, e não pode ser irmão ou ascendente deste. E, como requisito principal, reside a análise da socioafetividade em si, ou seja, a paternidade ou a maternidade socioafetiva precisa ser estável e deve estar exteriorizada socialmente, elementos estes que devem ser demonstrados e provados perante o registrador civil, conforme previsto no artigo 10-A do Provimento 63 do CNJ. Por fim, o registro da paternidade ou maternidade socioafetiva somente será realizado pelo registrador após uma análise minuciosa dos documentos apresentados e mediante parecer favorável do Ministério Público Estadual.
3. Arpen/BA – Qual a importância da paternidade socioafetiva na vida da criança/adolescente?
Samara Borges – A existência de uma paternidade ou maternidade socioafetiva é tão singular na vida do filho reconhecido e do pai/mãe, que devemos fazer a seguinte reflexão: se família é afeto, nada mais real e concreto do que ter esse sentimento documentado e expresso publicamente na certidão de nascimento de alguém. Ver uma relação de cuidado e zelo, de um pai ou mãe e filho, que antes existia somente no campo abstrato dos sentimentos, mas que agora pode tomar forma através de um documento, é de fato uma realização na vida de todos os envolvidos, como também do registrador civil, que passa a se tornar o agente direto da referida mudança.
4. Arpen/BA – De que modo os Cartórios de Registro Civil contribuem com a paternidade socioafetiva?
Samara Borges – Os cartórios de registro civil contribuem com a paternidade socioafetiva à medida que concretizam o sonho, de transpor a relação paterna, construída ao longo dos anos, para o mundo jurídico, sendo que através daquele ato de reconhecimento, direitos sucessórios e patrimoniais passam a ser garantidos mediante a apresentação da certidão averbada. Ademais, a grande capilaridade do registro civil representa o maior instrumento de inclusão social e acessibilidade nos casos de reconhecimento de paternidade e maternidade socioafetiva, na medida em que em todos os municípios do país um cartório de registro civil das pessoas naturais se faz presente e poderá praticar referido ato.
5. Arpen/BA – Qual a diferença entre apadrinhamento e paternidade socioafetiva?
Samara Borges – O apadrinhamento civil, previsto no artigo 19-B do Estatuto da Criança e do Adolescente, consiste em estabelecer determinados vínculos com crianças e adolescentes em programas de acolhimento institucional ou familiar, “para fins de convivência familiar e comunitária e colaboração com o seu desenvolvimento nos aspectos social, moral, físico, cognitivo, educacional e financeiro”. Portanto, se estabelece uma relação com a criança ou adolescente, seja ela material, moral ou afetiva, porém não há qualquer vínculo jurídico. Por sua vez, a paternidade ou maternidade socioafetiva corresponde a uma construção, através do afeto, da chamada “posse de estado de filho“, ou seja, há uma disposição e tratamento de pai com seu filho e o mesmo em relação ao filho com seu pai, exteriorizada perante a comunidade em que vivem, sendo esta pública, contínua e incontestável, como se uma relação biológica ali existisse, sendo, contudo, construída tão somente através do afeto.
Fonte: Assessoria de comunicação da Arpen/BA.