A divisão dos bens provenientes dos proventos do trabalho, seja em um casamento ou união estável, com o regime de comunhão parcial de bens adotado, ainda gera controvérsias na sociedade.
A explicação a seguir valerá também para o regime de comunhão universal, que abrange todo o patrimônio do casal em um único conjunto.
Faz-se necessário esclarecer esse assunto, uma vez que ainda persiste certa confusão a respeito. Quando o regime de comunhão parcial é eleito pelo casal, significa que durante a vigência dessa relação, ocorrerá a comunicação dos bens adquiridos e construídos durante a união, os quais serão considerados como pertencentes ao casal.
Esclareço com base nos artigos da própria lei:
“Artigo 1.658, Código Civil – No regime de comunhão parcial, comunicam-se os bens que sobrevierem ao casal, na constância do casamento, com as exceções dos artigos seguintes.
Artigo 1.725, Código Civil – Na união estável, salvo contrato escrito entre os companheiros, aplica-se às relações patrimoniais, no que couber, o regime da comunhão parcial de bens.” [1]
A princípio, pode parecer simples; no entanto, quando o Código Civil de 2002 abordou a comunhão parcial de bens, incluiu um inciso no artigo que trata do tema, gerando toda essa incerteza, a saber, o inciso VI do artigo 1.659 (comunhão parcial) e o artigo 1.668 (comunhão universal):
“Artigo 1.659, Código Civil – Excluem-se da comunhão:
VI – os proventos do trabalho pessoal de cada cônjuge;
Artigo 1.668, Código Civil – São excluídos da comunhão:
V – Os bens referidos nos incisos V a VII do artigo 1.659.”
A leitura literal poderia levar-nos a entender que não haveria comunicação dos bens provenientes do trabalho pessoal de cada indivíduo, seja em casamento ou união estável.
No entanto, para resolver essa contradição da lei, atualmente prevalece o entendimento dos julgadores, que utilizam como fundamento a essência do regime de comunhão parcial de bens. Afinal, se fosse de outra forma, poder-se-ia interpretar que o regime de comunhão parcial e o de comunhão universal de bens seriam anulados, uma vez que ambos excluem os proventos do trabalho pessoal.
No que diz respeito ao depósito do FGTS, este tem sua origem no trabalho do empregado, sendo obrigação do empregador depositar o equivalente a 8% do salário. Com o tempo, esse valor acumula-se e torna-se significativo para o funcionário, que pode sacá-lo nas hipóteses legais, como demissão sem justa causa ou para aquisição da casa própria, por exemplo.
Por ser proveniente do trabalho de cada pessoa, parece natural que pertença a cada indivíduo individualmente, como um direito personalíssimo do trabalhador. No entanto, o STJ (Superior Tribunal de Justiça), seguindo um entendimento já consolidado, afirma que haveria uma negação do regime de comunhão parcial de bens se os proventos de cada cônjuge não fossem comunicados, incluindo-se os proventos do trabalho e a meação dos valores oriundos do FGTS.
“Não se pode olvidar que o artigo 1.659, VI, do CC/2002, é fruto de profunda discussão no âmbito doutrinário e jurisprudencial, especialmente porque, se fosse a regra interpretada literalmente, o resultado seria a incomunicabilidade quase integral dos bens adquiridos na constância da sociedade conjugal, desnaturando-se por completo o regime da comunhão parcial ou total de bens.” [2]
Em outras palavras, a essência desse regime comum de casamento ou união estável é a divisão do patrimônio e dos bens conquistados durante o relacionamento. A dedicação conjunta para o desenvolvimento da família é maior do que aparenta, e o direito que era exclusivo do trabalhador torna-se compartilhado entre os cônjuges.
Caso contrário, não apenas os regimes, mas também a finalidade do casamento estaria comprometida:
“Artigo 1.511, Código Civil – O casamento estabelece comunhão plena de vida, com base na igualdade de direitos e deveres dos cônjuges.”
Não podemos esquecer das situações que ainda existem entre os casais, como a diferença de renda (em que um ganha mais que o outro) ou quando optam por um dos cônjuges dedicar-se integralmente ao cuidado dos filhos e da casa. A discrepância na arrecadação financeira pode prejudicar a pessoa que aufere menos ou não possui renda alguma. No entanto, essa escolha por parte de um casal não significa falta de esforço ou dedicação do cônjuge que permanece em casa.
Para ilustrar melhor essas duas hipóteses, utilizo o conhecimento de Maria Berenice Dias [3]:
Quando um dos cônjuges adquire bens para o lar, enquanto o outro acumula reservas pessoais provenientes de seu trabalho, a interpretação literal da norma não permitiria a comunicação do valor acumulado por um dos cônjuges. No entanto, seria partilhável o que foi adquirido em benefício do casal.
Na outra situação, ocorreria uma premiação de um cônjuge em relação ao outro, causando desigualdade entre eles. Normalmente, a mulher acaba desempenhando as tarefas domésticas, sem remuneração, que não são desprovidas de valor econômico. Na verdade, elas contribuem, seja reduzindo custos materiais ou com a contratação de serviços para a manutenção do lar.
Portanto, compreendemos que existe uma confusão legislativa ou uma formulação simplista sobre a comunhão parcial e universal de bens.
Com base no entendimento aperfeiçoado pela doutrina e pela jurisprudência, chegamos ao resultado da interpretação e à possibilidade de partilhar tanto as verbas trabalhistas quanto o FGTS, comunicando os bens durante o casamento, no caso da comunhão parcial de bens, ou tudo quando a opção escolhida for a comunhão universal.
No caso da comunhão parcial, os bens adquiridos durante a existência dessa relação são de propriedade exclusiva dos cônjuges e, quando o casamento chegar ao fim, cada um terá direito à sua meação ao requerer a partilha dos bens.
Para os casos relacionados às verbas trabalhistas, o STJ já prevê que as indenizações originadas e solicitadas durante o casamento serão objeto de partilha quando ocorrer o divórcio.
“A orientação firmada nesta corte é no sentido de que, nos regimes de comunhão parcial ou universal de bens, comunicam-se as verbas trabalhistas correspondentes a direitos adquiridos na constância do casamento, devendo ser partilhadas quando da separação do casal.” [4]
Da mesma forma, quando analisado sobre o FGTS o STJ entendeu de maneira favorável à partilha dos valores depositados em conta do FGTS durante a vigência do casamento, mesmo que não seja sacado imediatamente após a separação (casamento e união estável sob o regime da comunhão parcial), A decisão afirmou:
“[…] o reconhecimento da incomunicabilidade daquela rubrica apenas quando percebidos os valores em momento anterior ou posterior ao casamento. Na constância da sociedade os proventos reforçam o patrimônio comum e o que deles advier, ou mesmo considerados em espécie, devendo ser divididos em eventual partilha de bens.” [5]
Valendo-se do depósito anterior ou posterior ao casamento, o valor não será dividido pela força da meação do casamento, exceto quando for adotado o regime de comunhão universal de bens.
E, para concluir, protegendo o regime de comunhão parcial, trago as palavras do artigo de Flávio Tartuce, que destaca a rejeição de uma explicação simplista sobre o assunto. Esse é o enfoque que busquei elaborar neste artigo, fornecendo uma análise aprofundada da lei, jurisprudência e da doutrina. O autor mencionou uma figura importante que participou da elaboração do Código Civil de 2002:
Segundo Alexandre Guedes Alcoforado Assunção, jurista que participou da última fase do processo de elaboração do Código Civil de 2002:
“A previsão da exclusão dos proventos do trabalho de cada cônjuge, indicada no inciso VI, gera uma situação que se opõe à própria essência do regime. Ora, se os rendimentos do trabalho não são comunicados, os bens resultantes desses rendimentos também não são comunicados, conforme o inciso II, e, consequentemente, quase nada se comunica nesse regime, considerando que a maioria dos cônjuges vive dos rendimentos do seu trabalho. A comunhão parcial de bens tem como objetivo comunicar todos os bens adquiridos onerosamente durante o casamento, incluindo aqueles adquiridos com os frutos do trabalho.” [6]
Agora, informado desse direito e buscando a partilha, como as pessoas devem proceder?
Como conclusão, entendemos a possibilidade de partilha do FGTS e de verbas trabalhistas, ressalvado suas especificidades no caso em concreto, pelos regimes da comunhão universal e parcial de bens.
O valor somente será partilhado quando surgir uma das situações que permite o saque do FGTS, conforme estabelecido na Lei 8.036/90. Enquanto isso não ocorrer, você assegura o seu direito, comprovando o divórcio e a partilha, informando à Caixa Econômica Federal, que deverá reservar a quantia a ser recebida por você ou pelo cônjuge quando houver o saque no futuro.
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[1] In: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406compilada.htm>. Acesso em: 18/07/2023.
[2] STJ, REsp 1.651.292/RS, Terceira Turma, relatora ministra Nancy Andrighi, julgado em 19/05/2020, DJe 25/05/2020.
[3] DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 15° ed. Salvador. Editora JusPodivm, 2022. p. 697-701.
[4] In: <https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/27092020-De-meu-bem-a-meus-bens-a-discussao-sobre-partilha-do-patrimonio-ao-fim-da-comunhao-parcial.aspx>. Acesso em: 18/07/2023.
[5] STJ, REsp n° 1.399.199/RS. Relatora ministra Maria Isabel Galotti, relator para acórdão ministro Luís Felipe Salomão. Julgado em 09/03/2016. DJe 22/04/2016.
[6] Código Civil comentado. Coordenador Deputado Ricardo Fiuza. São Paulo: Saraiva, 2004. p. 1519.
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Felipe Monteiro Mello é pós-graduando em Direito de Família e Sucessões pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC-Campinas) e membro do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM).
Fonte: ConJur