Apesar da regulamentação feita pelo CNJ, pauta ainda carece de avanços para combater homofobia
Quem vê Paulo Barbosa, de 36 anos, comunicativo e risonho, não imagina que o empresário já teve vergonha de demonstrar afeto em público para o esposo, Robert Alex, de 38 anos. Os dois são casados em cartório há três anos.
“Foi uma dificuldade no início do nosso relacionamento. Paulo não gostava dessa demonstração de carinho e eu sempre quis, mas chegou um momento que eu também já não queria”, diz Robert. Ao longo dos anos, a atitude do parceiro foi mudando. “É extremamente importante que as pessoas demonstrem seus afetos, seus amores, seja no cinema, na praça, na praia”, completa Paulo.
Embora as relações entre pessoas do mesmo sexo sejam reconhecidas e protegidas por leis, a regulamentação do casamento civil homoafetivo concedida pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) possui apenas 10 anos, completos neste domingo, 14. O direito foi impulsionado pela sua legalidade declarada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em maio de 2011, quando foi alterado no Código Civil o entendimento de que a família só é formada por uma mulher e um homem.
Desde a autorização nacional para que os Cartórios de Registro Civil baianos realizem casamentos entre pessoas do mesmo sexo, o número de matrimônios entre casais homossexuais cresceu seis vezes no estado. De acordo com a Associação dos Registradores de Pessoas Naturais da Bahia (Arpen/BA), são realizadas 241 celebrações por ano no estado, sendo 51,4% entre casais femininos e 48,6% entre casais masculinos.
Segundo o órgão, até abril de 2023, a Bahia contabilizou 2.582 casamentos entre pessoas do mesmo sexo. Em 2013, primeiro ano de vigência da autorização nacional, foram 99 celebrações, seguidas por 134 em 2014, 117 em 2015, 167 em 2016, 140 em 2017, 288 em 2018 e 325, em 2019. Em 2020, primeiro ano da pandemia, foram totalizados 191 casamentos, já em 2021 os matrimônios voltaram a crescer, com 303 atos, atingindo o recorde em 2022, com 648, e aumento de 113% em relação ao ano anterior. Até o mês passado foram 170 casamentos.
Luta por amor e direitos
Contando com o namoro, Paulo e Robert têm 17 anos de relacionamento. Eles se conheceram pelo Orkut, rede social desativada em 2014. Robert fazia parte de um grupo cultural em uma ONG, no bairro do Uruguai, em Salvador. Já Paulo integrava um projeto no espaço cultural da Barroquinha. Ele pensou que o futuro namorado fosse cantor e enviou mensagem para saber quando Robert faria uma apresentação. Depois disso, os dois marcaram um encontro.
Eles se viram pela primeira vez no dia 14 de julho de 2006, e foi em um show no Beco dos Artistas, no Pelourinho, que aconteceu o primeiro beijo. Após o encontro, o casal não se desgrudou mais: com apenas um mês de relacionamento, foram morar na casa da mãe de Paulo.
Do namoro para o casamento, Paulo e Robert decidiram oficializar a união em cartório após a eleição do ex-presidente Jair Bolsonaro. Isso porque o mandatário e seus apoiadores, por diversas ocasiões, já proferiram declarações homofóbicas e ameaçaram a redução de leis voltadas a proteger os direitos da população LGBTQIAP+.
“Eu despertei para a importância de ter um registro de casamento quando o ex-presidente se elegeu e eu senti que nossos direitos seriam esvaziados. Então, eu precisava garantir os nossos direitos, com relação aos nossos bens e propriedades”, afirma Paulo.
De acordo com a Associação dos Registradores de Pessoas Naturais do Estado de São Paulo (Arpen/SP), até setembro de 2021, foram realizados cerca de 7.451 casamentos de pessoas do mesmo gênero, um aumento de 37% em relação ao ano de 2020. Na Bahia, o primeiro casamento civil entre homoafetivos, ocorreu pouco mais de um ano após a resolução do STF, no dia 20 de dezembro de 2012, no Fórum Ruy Barbosa.
Na última terça-feira, 9, a Corregedoria Geral do Tribunal de Justiça da Bahia (CGJ-TJBA) promoveu, a primeira cerimônia gratuita de casamento coletivo do projeto “Enfim, Nós”, que contempla casais da comunidade LGBTQIAP+ que tiveram interesse em registrar a união e formalizar sua entidade familiar. A celebração foi realizada no salão de Casamentos do Cartório de Registro Civil, em Santo Antônio Além do Carmo. Oito disseram sim ao amor, ao orgulho e ao matrimônio.
A mesma insegurança, trazida pelo governo Bolsonaro, foi o que levou Bianca Bastos, de 32 anos, e Tamyres Menezes, de 31, a optarem por formalizar a relação. “O avanço do casamento homoafetivo é um subterfúgio que nós da comunidade temos para tentar nos garantir, acessar direitos, ter mais voz, força, reconhecimento, porque ser casada nos recoloca e nos reposiciona na sociedade”, explica.
Bianca e Tamyres formalizaram a relação quase despretensiosamente em um casamento coletivo em 2019, realizado pela Defensoria Pública da Bahia (DPE-BA), no auditório Raul Chaves da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia (Ufba). Em um dia de folga do trabalho de Tamyres, que é assistente social em hospitais, Bianca, estudante de Direito no local em que se casaram, disse que as duas se encontrariam para obter mais informações sobre a realização do casamento, na Defensoria do Estado da Bahia, no Jardim Baiano. Depois disso, o casamento foi realizado.
Anderson Spavier e Ricardo dos Santos, ambos de 49 anos, tinham união estável desde 2006, mas decidiram adiantar o processo para o casamento civil em novembro de 2018, também como forma de proteger os seus direitos.
“Por causa da eleição do ex-presidente, resolvemos acelerar a ideia do casamento em um cartório de nossa região, fizemos a conversão da união estável em casamento civil. Compareci no cartório, inclusive, ele não estava presente, solicitei as informações, recebi a lista de documentação, reuni os documentos, fiz o pagamento e foi agendado o dia da retirada da documentação”, relata Anderson, que é professor da educação básica.
Os dois se conheceram na noite de 16 de junho de 2011, na saída de um bar na Pituba. “Estamos juntos desde 21 de junho daquele mesmo ano. São quase 22 anos”, conta Anderson. Garantir os direitos de Ricardo, que é cabeleireiro, também foi uma preocupação dele.
“Durante esses anos, sempre pensamos na adoção legal de nossa união e na aquisição de direitos, pois o reconhecimento de nossas famílias já era uma realidade desde sempre. Primeiramente, em 2006, fizemos um contrato particular de união estável para que ele tivesse acesso ao plano de saúde registrado em cartório e esse contrato serviu para essa finalidade”, relata.
Apesar da decisão do CNJ, a falta de uma lei acrescida à Constituição Federal do Brasil representa um grande risco às pessoas LGBTQIAPN+ que querem se casar. De acordo com o 3º do artigo 226 da Constituição Federal do Brasil, “para efeito de proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento”.
Despertei para a importância de ter um registro de casamento quando o ex-presidente se elegeu e eu senti que nossos direitos seriam esvaziados
Para Ives Abreu, presidente da Comissão de Diversidade Sexual e Gênero da Organização dos Advogados da Bahia (OAB/BA), o problema precisa ser resolvido com urgência para evitar a perda de direitos para a população
“A necessidade de uma lei específica para abraçar a população LGBTQIAPN+, é urgente para evitar retrocesso de direitos e ameaças aos direitos fundamentais dessa população, como por exemplo, ocorreu na eleição do ex-presidente Jair Bolsonaro, onde casais LGBTQIAPN+ decidiram antecipar o casamento por receio de que o direito a união fosse revertido no país. Embora não tenha feito disso sua pauta de campanha na época, o ex-presidente já deu diversas declarações consideradas ofensivas à população da comunidade”.
Preconceito estrutural
Bianca argumenta sobre as diferenças e necessidades de um casal homoafetivo em comparação com um casal hetero. “Quando há um casal hetero, ninguém questiona se tem uma aliança no dedo do homem ou da mulher, tende a ser natural entrar num hospital, o acesso à informação, mas quando são duas mulheres ou dois homens, há muita dificuldade. A gente já teve que mostrar a certidão de casamento”, relata.
De acordo com Ives Abreu, apesar dos avanços em relação aos direitos relacionados ao casamento homoafetivo, em 2013, a caminhada ainda é longa. “Não basta criarem resoluções, jurisprudências, entendimentos e leis, pois o sistema precisa ser reeducado para atender e acolher de forma digna essa população. Sendo assim, por mais que a comunidade tenha atualmente mais direitos ‘no papel’ a vida diariamente é muito desafiadora. Então, é necessário reeducar e capacitar todo o sistema para aplicarem os direitos conquistados”.
Para Anderson, a aliança política entre conservadores, pode minar os direitos do casamento homoafetivo conquistados até agora no Brasil. “Se a extrema direita ganhar as próximas eleições e se os ministros do STF estiverem alinhados com uma ideia conservadora, a ideia de união homoafetiva pode não ser reconhecida. Tudo muda de acordo com as pessoas que ocupam os espaços decisórios, embora, não deveria acontecer, pois, juridicamente, os conceitos não mudam”, alega.
Bianca diz que é importante continuar lutando para os avanços em relação ao casamento e relacionamento homoafetivo. “Há a necessidade de uma emenda à Constituição, para ampliar a diversidade do que pode ser homem e mulher. Precisa ocorrer um debate constitucional para que possamos avançar, porque o preconceito é estrutural. Essa estrutura que nega nossos corpos, nossa existência e a existência da nossa família”, argumenta Bianca que já participou do Núcleo de Políticas e Práticas Agrárias (NEPPA).
Segundo Tamyres Menezes a conquista destes direitos também passa pelo ativismo da comunidade LGBTQIAPN+ na Bahia. “É necessário fortalecer os movimentos sociais daqui. Dar recurso, dar voz, porque aqui há muitos grupos organizados que prestam esse suporte. Precisamos fortalecer essas instâncias e estruturas”.
“A comunidade LGBTQIAPN+ precisa ser ouvida, como também deve ter espaço, visibilidade e oportunidade tanto em relação ao casamento e a união, quanto a todas as outras necessidades, direitos e deveres. Pessoas cisgêneras e heterossexuais, geralmente brancas e em locais de poder, que são responsáveis pela criação e aplicação de resoluções jamais saberão, ou chegarão minimamente perto, de viver as violências diárias suportadas pelas pessoas LGBTQIAPN+”, concorda Ives Barreto.
Mas afinal, o que é família?
Neto e sobrinho de costureira, Paulo, assim como o esposo, trabalha desde criança e encontrou na família, comerciante, um incentivo para criar em conjunto com Robert, a Closet Clothing, marca baiana de roupas de praia voltada para o público gay, primeira do estado a realizar vendas por WhatsApp. No entanto, segundo Paulo a caminhada não foi fácil, principalmente por causa da infância pobre.
“Nós viemos de uma família pobre, somos gays, pretos. É muito complicado, mas sempre fomos movidos por sonhos e ideais, e decidimos sair daquela zona de conforto e nos unimos. Robert disse que tínhamos que montar uma loja, o que para mim era só coisa de gente rica e branca e que não podíamos ter esse acesso”, diz Paulo.
O casal veio de constituições familiares diferentes. Paulo foi criado em uma família eudemonista, constituída por ele e os avós. Já o esposo, recebeu os cuidados da mãe, avó e também toma conta do irmão menor de idade. E é seguindo esses passos que Paulo pretende deixar um legado de amor para sua futura família e parentes.
“Temos a ideia de adotar ou de gerar o nosso filho e as pessoas precisam normalizar e naturalizar as coisas. Para os que virão, como meus sobrinhos e afilhados”.
Bianca e Tamyres, antes de se casarem, já se conheciam e estavam alinhadas pelas mesmas pautas ativistas. As duas se conheceram em 2012, quando Bianca era monitora da atual esposa na Ação Curricular em Comunidade e Sociedade (ACCS), na UFBA, e desde então se tornaram amigas. Nas eleições, em outubro de 2014, se reencontraram no ônibus. Momento em que Bianca estava afastada dos campus da faculdade. “Você estava muito linda com aquele vestido e em transição de cabelo liso para cacheado”, disse Bianca, ao se declarar para Tamyres.
Assim como os momentos que vivem juntas, as alianças das duas é também carregada de simbolismo. Nos anéis está escrito ‘Ijá’ e ‘Ifé’, palavras de origem Iorubá, que significam ‘lutar’ e ‘amor’, respectivamente.
“A família tem esses dois elementos, porque a gente ama. A gente cuida e constrói memórias afetivas, em cada detalhe, porque família é a melhor forma de mostrar o amor que a gente sente. Família é referência, é base, é destino, é encontro. São laços de duas pessoas e a nossa em breve vai crescer”, diz Bianca. “São duas pessoas que se ampliam para todos”, completa Tamyres.
Há a necessidade de uma emenda à Constituição, para ampliar a diversidade do que pode ser homem e mulher. Precisa ocorrer um debate constitucional para que possamos avançar, porque o preconceito é estrutural
*Sob supervisão da editora Bianca Carneiro
Fonte: A Tarde