Artigo – A alteração do regime de bens na união estável registrada perante o cartório de registro civil das pessoas naturais e o provimento n. 141/2023 do CNJ – Parte II

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Em dois artigos aqui publicados, estamos tratando dos procedimentos para a formalização da alteração do regime de bens na união estável perante o Cartório de Registro Civil das Pessoas Naturais (RCPN) em duas situações. A primeira diz respeito à união estável registrada; e a segunda é relativa à conversão da união estável em casamento. O tema está sendo estudado com base nos recentes arts. 9º-A, 9º-B e 9º-D do Provimento n. 37 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), acrescidos pelo Provimento n. 141 do mesmo CNJ.

Como pontuado em nosso texto anterior, esses dispositivos decorrem da positivação do registro facultativo da união estável, bem como do procedimento extrajudicial de conversão da união estável em casamento, tudo conforme os arts. 70-A e 94-A da Lei n. 6.015/1973 (Lei de Registros Públicos), introduzido pela lei 14.382/2022, a Lei do SERP ou do Sistema Eletrônico de Registros Públicos.

Caso, após o início da união estável, os companheiros desejem alterar o regime de bens, qual procedimento eles devem adotar? Como está apontado em nosso artigo anterior, existem três situações envolvendo a alteração de regime de bens na união estável, quais sejam: a) a que ocorre no curso de uma união estável não registrada no RCPN; b) a que se dá na hipótese de haver o registro da união estável no RCPN; e c) a que ocorre no momento da conversão extrajudicial da união estável em casamento, independentemente de a união estável estar ou não registrada previamente no RCPN. As duas primeiras hipóteses foram tratadas no nosso texto anterior, enquanto a terceira será aqui analisada.

Como é notório, a conversão da união estável em casamento poderá ocorrer diretamente perante o Cartório de Registro das Pessoas Naturais (RCPN), nos termos dos antes citados arts. 70-A da Lei de Registros Públicos e 9º-C a 9º-G do Provimento n. 37 do Conselho Nacional de Justiça.

Surgem então as relevantes dúvidas: como ficará a formalização do regime de bens para o casamento nessa hipótese? É possível que os interessados alterem o regime de bens no momento da conversão? É preciso, porém, e de início, atentar para algumas particularidades.

Quando se trata de casamento, a regra geral é a de que a adoção de qualquer regime de bens diverso do da comunhão parcial precisa ser formalizado por meio de escritura pública de pacto antenupcial, nos termos do art. 1.640, parágrafo único, do Código Civil.[1] O referido pacto antenupcial deverá, inclusive, ser registrado no Livro 3 do Cartório de Registro de Imóveis do domicílio dos cônjuges a fim de facilitar consulta por terceiros, o que é retirado do art. 1.657 da codificação privada e do art. 178, inc. V, da Lei de Registros Públicos.[2]

Essa regra geral precisa ser conciliada com as particularidades da anterior união estável, em relação à qual a legislação autoriza o seu registro no RCPN com a escolha de regime de bens mediante um título qualificado: uma escritura pública, um termo declaratório ou uma decisão judicial.

Diante desse cenário, o Provimento n. 37 do CNJ adotou uma solução conciliatória. Em havendo a conversão da união estável em casamento, a regra é a manutenção do mesmo regime de bens que vigorava ao tempo da união estável. Se o regime era o da comunhão parcial de bens, esse seguirá em vigor, sem a necessidade de qualquer formalidade adicional por se tratar do regime legal ou supletório.

Se, porém, o regime de bens era outro quando da união estável, haverá a necessidade da presença de um título qualificado – uma escritura pública, um termo declaratório ou uma decisão judicial, como pontuado -, ou, alternativamente, de uma escritura pública de pacto antenupcial para sustentar formalmente o regime de bens do casamento.

Imagine-se o caso concreto em que um casal vivia em união estável sob o regime da separação convencional de bens, escolhido mediante um título qualificado. Ao converter essa união estável em casamento, eles não precisarão lavrar uma nova escritura pública de pacto antenupcial, pois já portam um título qualificado, o qual foi forjado ao abrigo da fé pública, à semelhança da escritura pública de pacto antenupcial.

Bastará, assim, aos companheiros apresentarem esse título qualificado no momento do requerimento da conversão da união estável, sendo irrelevante se a união estável estava ou não registrada. O que importa é se a escolha do regime de bens da união estável estava formalizada pelo tão citado título qualificado. Essa é a inteligência do art. 9º-D, § § 1º e 5º, inc. I, do Provimento n. 37 do CNJ.

Na hipótese descrita, o título qualificado equivalerá ao pacto antenupcial e, portanto, será o título a ser levado a registro no Livro 3 do Cartório de Imóveis do domicílio dos cônjuges, conforme preceitua o art. 9º-D, § 6º, do Provimento n. 37 do CNJ.

Voltando ao exemplo exposto, suponha-se que o casal vivia sob o regime da separação convencional de bens, com base em um contrato escrito por instrumento particular. Nessa hipótese, ao requerer a conversão da união estável em casamento, será necessária a apresentação de uma escritura pública de pacto antenupcial, visto que inexiste justamente um título qualificado a sustentar a escolha de um regime de bens diverso do legal. Essa é a inteligência do art. 9º-D, §§ 1º e 5º, inc. I, do Provimento n. 37 do CNJ.

Nada impede, porém, que o casal, momentos antes do requerimento da conversão da união estável, formalize a escolha do regime de bens da união estável por meio desse título qualificado. Nessa situação, ao requerer a conversão da união estável, não haverá necessidade de uma escritura pública de pacto antenupcial, à vista da suficiência desse título para arrimar a escolha de regime de bens diverso do legal para o casamento.

Outra questão curiosa é saber se, no momento da conversão da união estável em casamento, é possível ou não que o casal altere o regime de bens, de modo que o casamento será sujeito a um regime diverso do que vigorava ao tempo da união estável. A resposta é positiva, e, nesse ponto, o Provimento n. 37 do CNJ foi propositalmente menos burocrático em relação aos companheiros, além de se preocupar com a exigência de expressa manifestação de vontade deles. Nessa esteira, se o casal pretender que, após a conversão da união estável em casamento, passe a vigorar um novo regime de bens, é obrigatória a manifestação expressa de suas vontades.

Se o novo regime for o da comunhão parcial de bens, bastará a apresentação de uma declaração expressa e específica dos companheiros nesse sentido, que poderá constar do próprio requerimento de conversão da união estável em casamento. Se, porém, o novo regime for diverso, caberá aos companheiros apresentarem uma escritura pública de pacto antenupcial. Não é cabível a apresentação de termo declaratório lavrado perante o RCPN, pois esse último instrumento é exclusivo para a união estável, e não para o casamento. Essas conclusões são retiradas do art. 9º-D, §§ 2º, 3º e 5º, incs. I e II, do Provimento n. 37 do CNJ.

Em qualquer hipótese, não haverá a necessidade de os consortes apresentarem certidões de interdição, de protestos e nem de feitos judiciais, pois essas exigências são exclusivas para as hipóteses de alteração do regime de bens no curso da união estável. O Provimento n. 37 do CNJ, mais uma vez propositalmente, deixou de exigir essas certidões no caso de mudança de regime de bens no momento da conversão da união estável em casamento por dois motivos. O primeiro deles é a necessidade de desburocratizar o ato. O segundo motivo está relacionado ao fato de que os interesses de terceiros estarão totalmente resguardados diante da alteração de regime de bens.

Aliás, sobre esse último aspecto, quando houver alteração do regime de bens, o inciso IV do art. 9º-C do Provimento n. 37 do CNJ é expresso em exigir que, no assento de conversão da união estável em casamento, seja expressamente colocada a seguida advertência: “este ato não prejudicará terceiros de boa-fé, inclusive os credores dos companheiros cujos créditos já existiam antes da alteração do regime”. Entendemos que, apesar do silêncio do Provimento n. 37 do CNJ, essa advertência deverá constar de todas as certidões extraídas desse assento de conversão da união estável em casamento, pois seu objetivo é informar terceiros acerca de seus direitos.

Por fim, para encerrar este texto, são cabíveis dois alertas. O primeiro é o de que, no assento da conversão da união estável em casamento, somente será consignado o regime de bens que vigorava ao tempo da união estável se esse regime estava expressamente indicado em um título qualificado de união estável ou em um registro da união estável (art. 9º-C, inc. II, do Provimento n. 37 do CNJ). O motivo é que o registro público não pode disseminar informações com baixo grau de confiabilidade, como seria a proveniente de um instrumento particular lavrado pelas partes indicando um regime de bens para a união estável.

O segundo alerta é o de que a análise da incidência ou não do regime da separação legal ou obrigatória de bens, imposto pelo art. 1.641 do Código Civil, precisa atentar para as particularidades do ato envolvido.[3] Estamos diante da conversão da união estável em casamento, o que representa, na prática, a continuidade de uma convivência more uxorio mediante a migração de uma situação jurídica mais informal – a união estável – para uma mais formal – o casamento.

Por essa razão, não se aplicará o regime da separação legal se: a) os cônjuges tinham menos de setenta anos de idade ao tempo do início da união estável, e não ao tempo da sua conversão em casamento; ou b) as eventuais causas suspensivas do casamento, previstas no art. 1.523 do Código Civil e existentes ao tempo do início da união estável, tiverem sido superadas quando da sua conversão em casamento.[4] É o que estabelecem os §§ 3º e 4º do art. 9º-D do Provimento n. 37 do CNJ, em consonância com a posição doutrinária e jurisprudencial antes dominante.

Sobre o item a, o Enunciado n. 261, aprovado na III Jornada de Direito Civil, estabelece que “a obrigatoriedade do regime da separação de bens não se aplica a pessoa maior de sessenta anos, quando o casamento for precedido de união estável iniciada antes dessa idade”. No mesmo sentido, da jurisprudência superior, por todos: “afasta-se a obrigatoriedade do regime de separação de bens quando o matrimônio é precedido de longo relacionamento em união estável, iniciado quando os cônjuges não tinham restrição legal à escolha do regime de bens, visto que não há que se falar na necessidade de proteção do idoso em relação a relacionamentos fugazes por interesse exclusivamente econômico. Interpretação da legislação ordinária que melhor a compatibiliza com o sentido do art. 226, § 3º, da CF, segundo o qual a lei deve facilitar a conversão da união estável em casamento” (STJ, REsp 1.318.281/PE, relatora Ministra Maria Isabel Gallotti, Quarta Turma, julgado em 1/12/2016, DJe de 7/12/2016).

No que diz respeito ao item b ora descatado, na mesma III Jornada de Direito Civil, aprovou-se o Enunciado n. 262, in verbis: “a obrigatoriedade da separação de bens nas hipóteses previstas nos incs. I e III do art. 1.641 do Código Civil não impede a alteração do regime, desde que superada a causa que o impôs”. Mais uma vez a jurisprudência superior dialoga de forma precisa com a doutrina, ementando que, “se o Tribunal Estadual analisou os requisitos autorizadores da alteração do regime de bens e concluiu pela sua viabilidade, tendo os cônjuges invocado como razões da mudança a cessação da incapacidade civil interligada à causa suspensiva da celebração do casamento a exigir a adoção do regime de separação obrigatória, além da necessária ressalva quanto a direitos de terceiros, a alteração para o regime de comunhão parcial é permitida” (STJ, REsp 821.807/PR, relatora Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 19/10/2006, DJ de 13/11/2006, p. 261).

Nota-se, assim, que, de forma correta e precisa, o Provimento n. 37 do CNJ – nas alterações efetivadas pelo Provimento n. 141/2023 aqui estudadas -, apenas seguiu a posição consolidada da doutrina e jurisprudência nacionais, dando certeza e segurança para a alteração do regime de bens na conversão da união estável em casamento, aplicando corretamente a lei.

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[1] CC/2002. “Art. 1.640. Não havendo convenção, ou sendo ela nula ou ineficaz, vigorará, quanto aos bens entre os cônjuges, o regime da comunhão parcial. Parágrafo único. Poderão os nubentes, no processo de habilitação, optar por qualquer dos regimes que este código regula. Quanto à forma, reduzir-se-á a termo a opção pela comunhão parcial, fazendo-se o pacto antenupcial por escritura pública, nas demais escolhas.”

[2] CC/2002. “Art. 1.657. As convenções antenupciais não terão efeito perante terceiros, senão depois de registradas, em livro especial, pelo oficial do Registro de Imóveis do domicílio dos cônjuges” Lei de Registros Públicos. “Art. 178. Registrar-se-ão no Livro nº 3 – Registro Auxiliar: […] V – as convenções antenupciais.”

[3] CC/2002. “Art. 1.641. É obrigatório o regime da separação de bens no casamento: I – das pessoas que o contraírem com inobservância das causas suspensivas da celebração do casamento; II – da pessoa maior de 70 (setenta) anos; III – de todos os que dependerem, para casar, de suprimento judicial”.

[4] CC/2002. “Art. 1.523. Não devem casar: I – o viúvo ou a viúva que tiver filho do cônjuge falecido, enquanto não fizer inventário dos bens do casal e der partilha aos herdeiros; II – a viúva, ou a mulher cujo casamento se desfez por ser nulo ou ter sido anulado, até dez meses depois do começo da viuvez, ou da dissolução da sociedade conjugal; III – o divorciado, enquanto não houver sido homologada ou decidida a partilha dos bens do casal; IV – o tutor ou o curador e os seus descendentes, ascendentes, irmãos, cunhados ou sobrinhos, com a pessoa tutelada ou curatelada, enquanto não cessar a tutela ou curatela, e não estiverem saldadas as respectivas contas. Parágrafo único. É permitido aos nubentes solicitar ao juiz que não lhes sejam aplicadas as causas suspensivas previstas nos incisos I, III e IV deste artigo, provando-se a inexistência de prejuízo, respectivamente, para o herdeiro, para o ex-cônjuge e para a pessoa tutelada ou curatelada; no caso do inciso II, a nubente deverá provar nascimento de filho, ou inexistência de gravidez, na fluência do prazo.”

Fonte: Migalhas

 

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