Por Carlos Alberto Vilhena
Começo este texto com uma questão: se lhe perguntam quem você é, qual é sua resposta? Posso estar enganado, mas ela provavelmente começará assim: eu sou fulano(a) de tal… Independentemente do restante de sua fala, uma das primeiras palavras a sair de sua boca será o seu nome.
Embora algo trivial, nomes têm enorme importância. Eles são o ponto de partida de uma identidade, o alicerce para a construção da individualidade de cada pessoa. Do comum “José” ao inusitado “Nefertiti”, praticamente ninguém prescinde do nome para viver.
Mas o que fazer quando seu nome é fonte de sofrimento, angústia ou tristeza? O que fazer se seus pais, num arroubo criativo de gosto duvidoso, resolvem chamá-la(o) X Æ A-Xii, como fez o bilionário Elon Musk com um de seus filhos?
Você talvez desejasse mudar isso, não? Afinal, após anos de bullying na escola, ter um nome que mais parece uma equação matemática torna-se, digamos, inconveniente. Uma mudança lhe cairia bem.
Hoje, no Brasil, você pode fazer isso.
Desde o ano passado, a Lei no 14.382/2022 permite à pessoa maior de 18 anos mudar seu prenome, sem justificativa ou procedimento judicial, por uma única vez [1]. Basta ir a qualquer cartório de registro civil, solicitar a alteração, levar identidade, CPF, passaporte, título de eleitor, pagar algumas taxas e pronto [2]! Só resta aguardar a atualização do nome nos bancos de
dados governamentais e a emissão de novos documentos. Pouca burocracia para alterar um dado importantíssimo em sua vida.
No entanto, essa rapidez e simplicidade desaparecem, quando você é uma pessoa transexual com o objetivo de mudar não só seu nome, mas sua atribuição de gênero.
Aqui é fundamental destacar a importância dessa mudança para uma pessoa transgênero, alguém cuja personalidade está desalinhada do sexo biológico com que nasceu. Ter uma essência feminina num corpo masculino ou uma essência masculina num corpo feminino, ou ainda uma essência que não se adequa a nenhuma dessas duas categorias, é um tremendo desafio numa sociedade cisgênero.
Ser reconhecido(a)(e) por uma denominação e um gênero adequados é o mínimo que se espera de uma sociedade civilizada. É uma etapa fundamental ao exercício da cidadania dessas pessoas.
Contudo, em nosso país, se você nasceu “Maria”, mas se identifica como “Mariano”, ou nasceu “João” e se vê como “Joana”, obter o reconhecimento do Estado quanto a sua identidade fica muito mais difícil. E isso não deveria ser assim.
Hoje, a mudança no Registro Civil de Pessoas Naturais (RCPN) para pessoas trans é regulada pelo Provimento no 73/2018, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Essa norma elenca uma lista que varia de 12 a 17 documentos, conforme o caso, para que uma pessoa trans possa solicitar a alteração desejada no RCPN [3], quantidade essa desproporcional quando comparada aos quatro documentos descritos na Lei no 14.382/2022.
É importante destacar que o provimento do CNJ se baseia, entre outras coisas, em decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) no 4.275/DF. Nela, a corte mais alta do país estabeleceu que basta a pessoa transgênero declarar em cartório seu desejo de alterar nome e gênero para que seu pedido seja atendido [4]. Trata-se do direito ao livre desenvolvimento da personalidade do ser humano.
Além de excessiva, a documentação atualmente exigida ainda precisa ser custeada pela parte requerente, como também definiu o provimento do CNJ. Ocorre que as minorias transgênero no Brasil dificilmente obtêm emprego fixo. Noventa por cento dessas pessoas se encontram no mercado informal, muitas delas atuando como profissionais do sexo. O razoável seria assegurar-lhes a gratuidade de todo esse processo.
Em seu provimento, o CNJ também não previu a possibilidade de uma marcação de gênero distinta de masculino e feminino, caso das pessoas não-binárias, por exemplo. Esse é um outro desafio a ser superado pelo Estado, vez que tal definição interfere na percepção de identidade de uma pessoa.
O mais grave é que o referido provimento estabeleceu que uma pessoa trans casada, caso deseje alterar seu registro civil, quanto ao nome e ao gênero, depende da concordância de seu/sua cônjuge [5], numa restrição monumental, sequer aventada pela decisão do STF, pois violaria o direito ao livre desenvolvimento da personalidade.
Diante desses e de outros problemas vislumbrados na regulamentação do CNJ, a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão, em conjunto com seu Grupo de Trabalho População LGBTI+: proteção de direitos, enviou Nota Técnica ao Corregedor Nacional de Justiça, bem como às conselheiras e aos conselheiros do CNJ, sugerindo alterações no Provimento no 78/2018, de modo a adequar essa norma à realidade da população trans, permitindo a esse segmento de nossa sociedade o pleno exercício de seu direito à identidade.
Toda pessoa tem direito a um nome que corresponda à sua autoimagem. Não se trata de um favor do Estado ou da sociedade, mas de obrigação civilizatória e respeito à dignidade humana.
[1] https://www12.senado.leg.br/noticias/infomaterias/2022/12/nova-lei-permite-troca-de-nome-direto-no-cartorio-sem-acao-judicial. Acesso em 17/3/2023.
[2] Art. 10 da lei 14.382/2022, que dá nova redação ao art. 56 da Lei no 4.591/1964. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2022/lei/L14382.htm. Acesso em 17/3/2023.
[3] https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/2623. Acesso em 20/03/2023.
[4] https://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=15339649246&ext=.pdf. Acesso em 20/03/2023.
[5] https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/2623. Acesso em 20/03/2023.
Carlos Alberto Vilhena é procurador federal dos Direitos do Cidadão.
Fonte: ConJur