Na próxima sexta-feira, 31 de março, comemora-se o Dia Internacional da Visibilidade Transgênero, data criada em 2009 como uma reação à falta de reconhecimento das pessoas trans. Quatorze anos depois, ainda enfrentam-se grandes desafios e os pequenos avanços estão fortemente associados à busca por direitos.
A tabeliã Carla Watanabe, membro do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM, explica que datas como esta cumprem mandamentos da Constituição de 1988, os quais têm por objetivos erradicar a marginalização (art. 3º., III) e promover o bem de todos, sem preconceitos e discriminações (art. 3º., IV).
“No caso das pessoas trans, nossas lutas versam sobre o mais básico dos direitos, que é o de existir. Nossa história é apagada desde o momento que assumimos a autêntica identidade de gênero. Somos expulsas da família, da escola, do emprego e do círculo de amigos, que nos rejeitam por termos cruzado a fronteira intransponível do gênero. Como resultado, nós nos tornamos ininteligíveis, ou seja, o outro não nos reconhece como humanos, como um igual. Ao contrário, somos transformadas em ‘seres abjetos’, que podem ser ridicularizados nos púlpitos dos parlamentos, que são alvejados por insultos nas ruas e que merecem toda sorte de escárnio por ocupar ‘indevidamente’ o lugar do homem ou da mulher ‘de verdade’”, afirma.
Ela observa que a invisibilização de pessoas trans na vida em sociedade abre caminho para que sejam feitas agressões físicas e morais contra essa parcela da população. “Afinal, qual seria a consequência de acabar com a vida de quem não existe, de quem não é considerado humano e que, no máximo, desaparecerá nas estatísticas anônimas da violência urbana?”, questiona.
“Eu mesma já sofri ameaças à minha vida, fui perseguida pelas ruas por um automóvel e fugi de uma tentativa de estupro. Não bastasse, sou alvo diário de cyberbullying, pois perfis fakes tentam me desmoralizar profissionalmente em redes sociais, e de práticas de lawfare, com inúmeras denúncias falsas a órgãos fiscalizadores. Essa contínua série de ofensas vem de pessoas que acreditam que pessoas trans não devem ocupar posições de liderança e que o único lugar social a elas admitido situa-se à margem da sociedade. Esses ataques são consequências de toda minha história profissional ter sido propositalmente apagada por eu ser a única LGBTQIA+ assumida entre os mais de 12 mil titulares de cartório”, pontua.
Uma situação cômoda
Invisibilizar a população trans na esfera pública cria a ilusão de que essas pessoas de fato não existem. Carla Watanabe avalia que tal situação é cômoda, pois facilita a associação dessas pessoas aos estigmas da marginalidade, da prostituição e, nas religiões, do pecado.
“Por esse motivo, a ‘visibilidade trans’ busca destacar que existimos como pessoas, que temos a mesma dignidade de qualquer outro ser humano e que merecemos igual consideração social. Busca demonstrar que pessoas trans existem como sujeitos de direito; e que temos a capacidade de ocupar posições de liderança e de exercer qualquer profissão. Não somos restritas aos palcos artísticos e à área da estética, muito menos à prostituição. A invisibilidade ajuda a perpetuar estigmas que vulneram as pessoas trans, o que motiva a consolidação de um processo de discriminação estrutural na nossa sociedade”, defende.
Questionada sobre os principais desafios enfrentados pela população trans atualmente, Carla Watanabe aponta a própria ‘visibilidade trans’ como uma questão. Segundo ela, ao serem marginalizadas, essas pessoas não são ouvidas e não têm sequer lugar de fala para depor sobre sua própria vida, tornando-se um “outro subalterno que não tem direito a falar sobre si, sobre suas dores, aflições e felicidades”.
“Assim, resta-nos apenas ser sempre tutelados por aqueles que hierarquicamente detêm o poder de construir representações a nosso respeito na esfera pública, mas que desconhecem nossa realidade. É exatamente o cenário descrito pela professora indiana Gayatri Spivak em seu ‘Can the Subaltern Speak?’. Ela realiza uma crítica ao sujeito ocidental, soberano e hegemônico, que constrói um sistema de signos para substituir a fala do subalterno, cuja voz é silenciada”, aponta.
Necessidades desconsideradas
Dessa forma, são ocultados os pleitos de empregabilidade, de políticas de saúde pública e de educação, por exemplo. Como a sociedade não reconhece as pessoas trans como interlocutores confiáveis, suas necessidades são desconsideradas e elas são condenadas à inexistência e à irrelevância.
“É por esses motivos que questões fundamentais de saúde da população trans e travesti, como as relacionadas ao uso de silicone líquido, não são tratadas com a devida atenção nas unidades de saúde. Quantas pessoas já não perderam a vida, por descasos semelhantes que se repetem, devido ao despreparo e à má vontade do sistema de saúde para nos atender?”, questiona.
Questionada sobre os principais desafios enfrentados pela população trans atualmente, Carla Watanabe aponta a própria ‘visibilidade trans’ como uma questão. Segundo ela, ao serem marginalizadas, essas pessoas não são ouvidas e não têm sequer lugar de fala para depor sobre sua própria vida, tornando-se um “outro subalterno que não tem direito a falar sobre si, sobre suas dores, aflições e felicidades”.
“Assim, resta-nos apenas ser sempre tutelados por aqueles que hierarquicamente detêm o poder de construir representações a nosso respeito na esfera pública, mas que desconhecem nossa realidade. É exatamente o cenário descrito pela professora indiana Gayatri Spivak em seu ‘Can the Subaltern Speak?’. Ela realiza uma crítica ao sujeito ocidental, soberano e hegemônico, que constrói um sistema de signos para substituir a fala do subalterno, cuja voz é silenciada”, aponta.
E os avanços?
Ao analisar os principais avanços que dizem respeito aos direitos da população trans no Brasil, Carla Watanabe observa que o reconhecimento de direitos ocorreram por conta do Poder Judiciário. A discussão de qualquer tema relacionado à pauta de direitos sexuais e reprodutivos é reiteradamente impedida pelo ativismo conservador.
“Há, porém, um grande risco nesse caminho do reconhecimento judicial de direitos. Se houver uma mudança radical na composição de nossa Suprema Corte, muitas conquistas sociais podem ser perdidas. Essa situação ocorreu nos Estados Unidos, em 2022, com o overruling da decisão que garantia nacionalmente o direito ao aborto. A superação do caso Roe vs. Wade apenou principalmente as mulheres mais pobres, que não têm condições de viajar para estados cujas leis ainda reconhecem o direito da mulher à interrupção da gravidez”, explica.
“Para piorar, nosso Congresso, pelas razões que expus, não tem a mesma sensibilidade do Parlamento estadunidense. De fato, logo após a derrubada de Roe vs. Wade, percebeu-se que a decisão da Suprema Corte que legalizava nacionalmente o casamento entre pessoas do mesmo sexo (Obergefell vs. Hodges, de 2015) corria o risco de também sofrer um overruling. Assim, no final de 2022, foi aprovado no Senado e na Câmara de Representantes do país projeto suprapartidário que protegia o casamento inter-racial e que revogava as últimas disposições do DOMA (Defense of Marriage Act) que ainda discriminavam nacionalmente o matrimônio homossexual. Infelizmente não vejo condições para nosso Congresso Nacional aprovar legislação desse porte. Ao contrário, a tendência é a de aumentar o ativismo contra todas as minorias, devido ao crescente proselitismo fundamentalista antiliberal”, descreve.
Para Carla Watanabe, as conquistas recentes destinadas à população trans, como a possibilidade de retificação administrativa de sexo e de prenome de pessoas trans, sem necessidade de comprovação de realização de prévia cirurgia de readequação genital ou apresentação de laudos de terceiros , a criminalização da homotransfobia e a política prisional para pessoas trans privadas de liberdade “correm o risco de serem perdidas, a depender de eventual mudança na composição do Supremo Tribunal Federal – STF”.
Igualdade e Transexualidade
Na última segunda-feira, 27 de março, o Núcleo Internacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM, em Portugal, realizou a live “Igualdade e Transexualidade”, motivada pelo Dia Internacional da Visibilidade Transgênero.
Na transmissão ao vivo, a advogada Maria Berenice Dias, vice-presidente do IBDFAM, juntou-se a Jorge Eduardo Pinheiro, professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, para discutir a jurisprudência brasileira e portuguesa em relação a essa população.
O evento também contou com a participação da ativista pelo direito dos LGBTQIA+, Daniela Filipe Bento, e apresentação e mediação de Daiana Perrotti e Tereza Lima, presidente e vice-presidente do IBDFAM Núcleo Portugal, respectivamente.
Fonte: Ibdfam