Ortega confisca bens e apaga registro civil de opositores na Nicarágua

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Ao menos 317 pessoas tiveram a nacionalidade cassada por traição à pátria; 222 foram expulsos do país após deixarem a prisão

Perseguição, confisco de bens, nacionalidade cassada e, agora, registro civil apagado: essa é a realidade dos nicaraguenses acusados de traição à pátria pela ditadura de Daniel Ortega. Até agora, 317 pessoas estão apátridas e as denúncias que seus registros civis estão sendo apagados começam a surgir na Nicarágua. A atual ofensiva do líder sandinista contra dissidentes é a última de uma série de violações desde que ele foi reeleito sem oposição em 2021, marcada pela perseguição a líderes religiosos e ex-aliados.

“Nós fomos declarados traidores da pátria. Alguns tiveram bens e propriedades dentro do país confiscados, algo que não existe legalmente, e outros foram apagados de registro civil, ou seja, é como uma morte civil, como se a gente nunca tivesse existido. Os dados de nascimento e histórico sumiram. Entre os 317 sem nacionalidade hoje, vários são idosos, ou seja, recebiam aposentadoria, e agora não recebem mais”, conta o jornalista Héctor Mairena, que atualmente vive na Costa Rica.

Ainda não existe um número exato de quantos nicaraguenses perderam seus registros porque muitos continuam ou têm família no país e temem alguma represália. Mas Mairena acredita que é uma questão de tempo até que os 317 “deixem de existir” na Nicarágua.

De opositor à apátrida

Para entender como 317 ficaram apátridas em menos de uma semana, é preciso voltar alguns meses no cotidiano nicaraguense. Em janeiro deste ano, existiam 245 presos políticos na Nicarágua. Após um acordo com os Estados Unidos, no dia 9 de fevereiro 222 deles – alguns ícones da luta sandinista contra a ditadura de Anastasio Somoza em 1979, como Dora María Téllez – foram soltos, tiveram a nacionalidade cassada e foram deportados aos EUA.

Um dia depois, o bispo Rolando José Álvarez Lagos, símbolo da luta religiosa contra as arbitrariedades de Ortega, foi condenado a 26 anos de prisão por traição à pátria. Ele estava em prisão domiciliar desde agosto de 2022 e foi incluído na lista dos opositores que seriam deportados aos EUA, mas se recusou a embarcar.

No dia 10 de fevereiro, o bispo foi transferido para o Sistema Penitenciário Nacional, a chamada prisão modelo do país, se tornando o primeiro bispo preso desde que Ortega voltou ao poder em 2007. “Declara-se a perda dos direitos do cidadão do condenado, que será perpétua, tudo isso por ser o autor do crime de ofensa à integridade nacional em detrimento do Estado e da sociedade nicaraguense”, diz a decisão judicial, acrescentando “a perda da nacionalidade nicaraguense”.

“A Assembleia Nacional aprovou uma reforma constitucional que permite a Ortega tirar nacionalidade das pessoas. Essa é uma reforma sem legalidade porque é produto de uma Assembleia que carece de legitimidade e porque para reformar a Constituição é preciso seguir procedimentos que não foram seguidos, o principal deles é a aprovação da medida em duas votações”, explica Mairena.

Seis dias depois da prisão do bispo Álvarez, 94 opositores perderam a nacionalidade, entre eles Mairena, e foram inabilitados a exercer cargos públicos de forma perpétua justamente porque foram declarados traidores da pátria.

“Os acusados executaram e continuam executando atos delitivos em prejuízo da paz, da soberania, da independência e da autodeterminação do povo nicaraguense, incitando a desestabilização do país, promovendo bloqueios econômicos, comerciais e de operações financeiras, tudo em prejuízo da paz e do bem-estar da população. Por esses fatos, os acusados não podem mais ser considerados cidadãos nicaraguenses”, disse o magistrado Ernesto Rodríguez Mejía ao dar a decisão.

Internamente, a repressão continua forte na Nicarágua. Manuel (nome fictício por razões de segurança) não tem passaporte desde 2021, quando tentou deixar o país para ser vacinado contra a covid nos EUA. “Eu tentei viajar, mas confiscaram meu passaporte, não deixaram sair do país. Quis enviar minha filha de 13 anos durante as férias para a Flórida, mas também não lhe deram o passaporte. Vivemos, eu e meus filhos, como prisioneiros neste país”, conta.

O cerco aos religiosos e à imprensa continua forte. No início deste mês, duas universidades ligadas à Igreja Católica foram fechadas e terão de entregar ao Conselho Nacional de Universidades (CNU) todas as informações sobre alunos, professores, carreiras, planos de estudo, bases de dados de matrículas e habilitações.

“Estamos vivendo coisas absurdas aqui. Os jornalistas deixaram de exercer sua profissão e quem ficou, coloca no ar apenas o que é autorizado pela ditadura”, diz Manuel.

Pressão internacional

Para o jornalista exilado, a soltura dos 222 presos só foi possível após forte pressão interna e externa, mas a repressão de Ortega continuará aumentando. “Toda essa perseguição ocorre porque a ditadura tem o controle total e absoluto dos distintos instrumentos do Estado e os utiliza em função da repressão”, diz. Atualmente, 27 pessoas são mantidas como presos políticos na Nicarágua.

Mairena acredita que os países da América Latina precisam se unir em torno da condenação da ditadura Ortega e pede mais ação do Brasil. “Esperamos do governo brasileiro uma atitude distinta, categórica, condenando a ditadura. Lamentavelmente, ainda não veio. Lamentamos que o governo do presidente Lula não tome uma atitude firme de condenação. No Brasil, ocorreram ditaduras, Lula foi vítima disso, e é lamentável que não adote uma defesa dos direitos humanos”.

Na semana passada, após um grupo de especialistas da ONU acusar Ortega de “crimes contra a humanidade”, e pedir sanções internacionais, o Brasil ofereceu asilo aos nicaraguenses que foram expulsos. A hesitação do governo com a Nicarágua tem dividido a base de Lula.

“O Brasil está pronto para explorar formas para que a situação seja tratada de forma construtiva, em diálogo com o governo da Nicarágua e todos os atores relevantes. O governo brasileiro também recebeu com extrema preocupação a decisão das autoridades nicaraguenses de determinar a perda de nacionalidade de mais de 300 cidadãos”, disse o embaixador do Brasil no Conselho de Direitos Humanos da ONU.

Fonte: O Estado de S.Paulo

 

 

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