Por Patrícia de Almeida e Izaías Ferro Júnior
Dentro de uma abordagem jurídica objetiva, os oficiais registradores de pessoas naturais no exercício de sua atividade, identificam um ato ou fato jurídico e, a partir dessa análise, torna apto, ou não, registros e averbações.
Via de regra, o ato registral se concretiza a partir da genuína e prudente qualificação, em diversos casos, vem se limitando a explicar, ínsitos em uma estrutura lógica formal, a subsunção do ato ou fato jurídico aos parâmetros estipulados pela legislação. Em definitivo, o sistema registral brasileiro, em muito se apoia nessa estrutura sólida e rígida de um direito que fixa suas respostas atreladas às normas legais.
Nosso ponto de partida, quiçá, de longe tenha a intenção de ser um discurso contraditório frente ao extenso apanhado normativo-principiológico registral, clama atenção a polêmica envolvendo os registros civis de indivíduos que se auto identificam segundo o gênero não-binárie. E sob esse manto de invisibilidade, tecemos breves considerações.
A identidade não-binária (também conhecida não-binárie, em razão neutralidade inclusiva terminológica) é representativa de um conjunto de diversas identidades de gênero, situadas no contexto da cisnormatividade standart, isto é, a identificação do gênero não-binário está para além da definição normativa de sexo biológico1.
Questões envolvendo sexo biológico, mormente, passam pela identificação do ser humano ao nascer. Descrito pela medicina, o sexo do ser humano é definido como masculino ou feminino, e a percepção se firma, objetivamente, por intermédio da formação do órgão genital, apartado do gênero que se autodetermina ao longo da vida. Por essa ótica, o sexo atribuído no nascimento, parte da lógica dual: se masculino será definido homem; do contrário, se feminino será designado mulher.
Como visto, de modo diverso, o gênero trilha, de forma subjetiva, a auto percepção humana e o indivíduo, inserido na premente necessidade existencial de se auto firmar, vem sendo classificado pela medicina como cisgênero ou transgênero.
Dentro do universo das pessoas que se autodeclaram transgêneros, existem indivíduos que se identificam como masculino ou feminino mas, também, encontramos o gênero não-binarie (NGB)2, aqueles sem preferência a orientação preestabelecida.
Nesse sentir, inseridos em um contexto de um formalismo conceitual, apegados a noção de que, o pensamento humano segue mediante a uma simplista lógica formal – de que todo ser humano se encaixa nos padrões típicos do sexo pré-definido -, até pouco tempo atrás, parecia inconcebível a admissão de registros de indivíduos com características declaradas “intersexo” ou até mesmo “ignorada”.
Pois bem, na intenção de suprir determinadas lacunas normativas procedimentais, a intervenção do Conselho Nacional de Justiça vem concretizar com a edição do Provimento n° 122/20223, a significativa inclusão do sexo ignorado nos assentos de nascimento e nos óbitos fetais, otimizando, assim, os registros frente a realidade fática-jurídica, que sempre existiu, todavia, por muito tempo foi sonegada.
No que tange a esse aspecto procedimental, conforme dispõe a Declaração de Nascido Vivo (DNV) e a Declaração de Óbito Fetal (DO), tais formulários apresentam o campo “sexo”, a ser preenchido pelo responsável médico, descrevendo, junto a classificação padrão, a possibilidade descritiva de sexo ignorado, elemento, até então, necessário a lavratura do assento do registrando.
Ao considerar a variável “sexo”, um elemento essencial a individualização humana, o modelo estrutural que ora se apresenta, o correlaciona a fixação da personalidade humana e, a perfectibilização dos registros civis passam, necessariamente, por observar esse requisito como sendo um critério essencial.
E haverá, certamente, quem considerará dispensável, em um caminhar futurista e inovador, esse elemento a ser concebido acidental do registro; mas em linhas gerais, inserido no modelo estrutural atual, o direito registral ainda se mostra, em tese, linear, seguindo as práticas fielmente estabelecidas.
Pois bem, em um consciente respeito a diversidade de gênero (uma vez que a garantia da dignidade humana é precedente vetor axiológico as demais normas nacionais), à vista de um contingente universo de indivíduos declarados transgêneros no país, o Conselho Nacional de Justiça editou o Provimento n° 73, publicado em 28 de junho de 20184.
O referido ato normativo, detalha o procedimento de averbações e de alterações de prenome e de gênero, ou de ambos, nos assentos de nascimentos e casamentos de pessoas transgêneros, padronizando os registros civis de pessoas naturais do país, o respeito a auto identificação de gênero, livre de quaisquer discriminação.
A verdade dos fatos é, ao enfrentar o tema “diversidade de gênero”, há uma infinidade categórica de situações que exige maior distinção terminológica pois, reforça nosso acurado olhar, a um grupo significativo de pessoas que, em razão da sua por autonomia e liberdade de escolha, ainda, no que tange ao gênero, persiste na indigitada questão envolvendo a descrição de sexo.
Esse corte preciso, dentro da prática do registro civil, deve ser posto em exame, pois fere, em essência a dignidade humana e carrega, por si só, o seu caráter verdadeiramente inclusivo, tão crucial a completude de um legítimo desenvolvimento individual e social.
Contudo, destaca-se, em que pese as diferentes concepções sobre a basilar, ou não, pontual descrição desse item como elementar no assento registral, ainda que se venha a permitir essa concretude de direito, muitos profissionais entendem que seria o mesmo que dar asa ao “avesso do direito”, posta a total ausência de segurança jurídica. Sem embargo, ao contrário, fecham-se caminhos, antecipadamente, quando passamos a analisar os registros públicos, apenas ângulo positivista da lei, um dever que acompanha registrador público ao lutar também, pela segurança social.
Centrado na esfera social, ao considerarmos a eterna busca pelo respeito a condição humana, nosso maior desafio, sem dúvida como operador jurídico é atribuir visibilidade funcional à dignidade da pessoa humana, retirando-a do convincente discurso retórico convencional, de modo a alcançar maior interação do indivíduo, da lei e da sua própria realidade social.
Para tanto, essa integração, exige proatividade da tríade governamental, para fins de consolidar um direito registral maleável – concatenado a tese construtiva de um direito dúctil -, refletindo toda e qualquer situação fática-social, situado fora do formalismo positivista exacerbado, tecnicamente centrado apenas nos indivíduos que, naturalmente, possuem visibilidade.
Pioneiro estudo científico na América Latina, ligado a Faculdade de Medicina da Universidade Estadual Paulista (UNESP), publicado na Scientific Reports, observa que, aproximadamente, 2% da população adulta brasileira se autodeclara transgênero, sendo que, nesse universo, aproximados 1,19% se identificam não-binário, isto é, quase três milhões de pessoas no país.5 Outros países tem igualmente taxas até maiores, como Alemanha e Chile, com 4% de sua população declarando-se transgênero ou não binária6, e a exemplo da Alemanha, Islândia e Malta, já reconhecem o gênero não binário, e introduziram o registro de marcadores de gênero que não sejam masculinos ou femininos e não usam nenhum marcador de gênero em sua documentação oficial, há aqueles que estão trabalhando para adaptar seus sistemas para reconhecer identidades não binárias, como Bélgica, Países Baixos e Grécia.7
Isso é tem relevância não apenas aos estudos interligados a saúde mental, nada obstante, vem sendo essencial para estabelecer um diálogo imprescindível com o poder público à construção de políticas públicas direcionadas e assistenciais, de modo a impulsionar a criação de dispositivos legais condizentes a essa parcela da população, com sugestiva alteração da legislação registral em atenção aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável firmado pelo Brasil junto à Organização das Nações Unidas.8
O direito, de longos tempos, vem padecendo desse erro de percepção, e o registrador civil, atuante Ofício de Cidadania, em virtude da aproximação social e capilaridade dos serviços em todo país, diariamente, vem reconhecendo as imprecisões e as lacunas do sistema normativo nacional.
Alguns Estados da Federação, a citar, o exemplo da Corregedoria Geral da Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, através do Provimento n° 16/2022,9 autoriza que indivíduos autodeclarados não-binários, alterem prenome e gênero, incluindo o gênero para não-binarie nos seus registros, mediante procedimento de retificação administrativa, solicitado pessoalmente, pelo interessado, diretamente em cartório.
A iniciativa de alteração procedimental pela ação da Corregedoria Geral de Justiça do Tribunal do Rio Grande do Sul partiu da integração do Tribunal a Agenda de 2030/ONU, em observância ao desenvolvimento institucional, a promoção da máxima inclusão social e a busca pela redução das desigualdades em todos os níveis, através de ações direcionadas a firmar o Estado de Direito, o respeito aos direitos humanos e a responsabilidade das instituições públicas, acompanhando as diretrizes fixadas pelo Supremo Tribunal Federal.10
Nessa senda, o Tribunal de Justiça do Estado da Bahia, em meados de 2022, editou o Provimento Conjunto n° 08, CGJ/CCI/2022- GSEC11, pontuando a necessidade de adequação da atividade registral baiana à plena identificação contemporânea dos transgêneros não binárie, em um pleno exercício de evitar quaisquer práticas discriminatórias de gênero e inclusão social desburocratizante, solicitadas pela via administrativa extrajudicial.
Tal direcionamento está centrado não apenas na questão da segurança jurídica prestada pelos registros públicos mas, principalmente, na busca pela segurança social, alcançada pela prestação de um serviço público qualificado, abrangendo direitos fundamentais e sociais.
A evolução e essa concretude registral tem alcançado espaço no universo da justiça nacional. Em recente posição, o Tribunal de Justiça do Estado de Pernambuco,12 em ação promovida pela Defensoria Pública Estadual, reconheceu em janeiro do corrente ano, a alteração do registro de nascimento com base no gênero não-binárie – reafirmando o uso da linguagem neutra -, e a aceitação do marcador de gênero, para além da alteração de nome solicitada.
Pelo visto, com efeito, entre retas e curvas, o direito busca traçar o seu próprio itinerário, estabelecendo pontos de contato entre a realidade social e a norma jurídica. É possível, sempre, aprimorar esse diálogo, não somente apontando e descrevendo as suas imprecisões.
Transcender os limites desse universo jurídico sistêmico13 representa um desafio. Pensar o Direito, como um ponto de partida para novos pontos de partida – em menção a Lênio Luiz Streck14 – vem direcionar a construção da legislação nacional adequada a realidade social, fundamentalmente, com o intuito de construir respostas a um direito que muitas vezes se encontra frágil.
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1 FUCHS, Jéssica Janine Bernhardt; HINING, Ana Paula Silva; TONELI, Maria Juracy Figueiras. Psicologia e cisnormatividade. Psicologia & Sociedade, n. 33, 2021. Disponível aqui. Acesso em 16.02.2023.
2 REVISTA GALILEU. O que é gênero não binário e como usar a linguagem neutra no dia a dia. Disponível aqui. Acesso em: 17.02.2023.
3 CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Provimento n° 122, de 13 de agosto de 2021. Disponível aqui. Acesso em: 16.02.2023.
4 CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Provimento n° 73, de 28 de junho de 2018. Disponível aqui. Acesso em: 16.02.2023.
5 SPIZZIRRI, Spizzirri, Giancarlo, Eufrásio, Raí; Lima, Maria Cristina Pereira; et al. Proportion of people identified as transgender and non-binary gender in Brazil. Scientific Report, v. 11, n° 2240, 2021. Disponível aqui. Acesso em: 17.02.2023.
6 6 charts that reveal global attitudes to LGBT+ and gender identities in 2021. Acesso em 21.02.2023.
7 Right now, just three european countries recognise non-binary identities, but others are pushing forward.. Acesso em 21.02.2023.
8 NAÇÕES UNIDAS BRASIL. Os objetivos de desenvolvimento sustentável no Brasil. Disponível aqui. Acesso em: 18.03.2023.
9 TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL. Corregedoria Geral de Justiça do Estado. Provimento n° 16/2022 – CGJ. Disponível aqui. Acesso em: 18.02.2023.
10 SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Agenda ONU. Disponível aqui. Acesso em: 17.02.2023.
11 TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DA BAHIA. Corregedoria Geral de Justiça do Estado. Provimento Conjunto n° 08, CGJ/CCI/2022- GSEC. Disponível aqui. Acesso em: 19.02.2023.
12 ALVES, Pedro. Justiça reconhece gênero ‘não binárie’ pela 1ª vez em Pernambuco e jovem tem certidão de nascimento retificada. Disponível aqui. Acesso em: 19.02.2023.
13 Os conceitos jurídicos são construções sociais que disponibilizam formas generalizadas de significado para que o direito funcione como direito e para que a sociedade se represente como uma forma objetiva com fundamentos normativos. Nessa perspectiva, a pretensão de validade do direito não é natural ou logicamente derivada de princípios superiores, mas o resultado de uma operação de abstração socialque, apesar das aparências, é sempre equívoco e incompleto. A incompletude do direito reside no fato de que o que passa a ser codificado como direito positivo está inevitavelmente ligado ao que o conceito não é ou está fora de seu alcance (o extralegal). Por isso, a identidade do ordenamento jurídico não se funda na facticidade da unidade, mas na facticidade da diferença: ou seja, na produção de autodescrições instituídas com sucesso que visam encobrir a contingência dos fundamentos do ordenamento jurídico, que podem ser identificados abstratamente, mas não realmente ‘encontrados’; e também na geração de tentativas alternativas de autodescrição que revalorizem o direito e expandam a imaginação normativa nas lutas pela definição da forma de sociedade. In: CORDERO, Rodrigo. The Negative Dialectics of Law: Luhmann and the Sociology of Juridical Concepts. Social & Legal Studies Volume 29, Issue 1, February 2020, Pages 3-18 The Author(s) 2019, Article Reuse Guidelines. Acesso em: 21.02.2023
14 STRECK, Lênio Luiz. Direito, literatura e o jardim dos caminhos que se bifurcam. In: GONZÁLEZ, José Calvo. Direito Curvo. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013, p. 59-71.
Autores:
Patrícia Lichs Cunha Silva de Almeida é doutora e mestre pelo Programa em Direito da Universidade de Marília (UNIMAR), graduada em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC/RS), graduada em Biblioteconomia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRS), e registradora Civil e tabeliã de Notas de Santa Salete, comarca de Urânia/SP.
Izaías G. Ferro Júnior é oficial de Registro de Imóveis, Civil das Pessoas Naturais e Jurídicas e de Títulos e Documentos da comarca de Pirapozinho/SP, especializado em Direito Civil e Processo Civil pela UES, mestre em Direito pela Escola Paulista de Direito (EPD), professor da graduação e da pós-graduação de Direito Civil e Registral em diversas universidades e cursos preparatórios, atual diretor de assuntos Agrários do IRIB e autor de diversas obras em coautoria sobre temas registrais.
Fonte: Migalhas